"Escravos de ganho"

Poderia ser ficção. Mas não é. Praça XV, segunda-feira, 24 de agosto, 18 h, sob chuva torrencial, um camelô vende guarda-chuvas sem parar, cantando sempre seu refrão: “Sombrinha é 5, familhão é 10!”. Na verdade, há vários vendedores ambulantes trabalhando ali e os refrões se confundem, se imbricam, e o canto parece não ter fim: “Sombrinha-familhão-5-10-guarda-chuva-olhaí-barato-vai-chover-mais-pode-pegar-tacabando-aproveita...”

O ritual da venda assemelha-se a uma espécie de dança da chuva. No entanto, eles não cantam para atrair a chuva, mas para mantê-la, e se as gotas param de cair eles ameaçam: “vai chover, olhaí, vai cair um pé d’água, melhor comprar comigo logo”.

E o mais incrível é o caráter mágico da aparição dos vendedores de sobrinhas: quando a primeira gota cai, eles surgem não se sabe de onde e lotam as ruas, esquinas, becos e calçadas da cidade.

Há os que trocam de produto para atender a demanda: se faz sol, eles vendem balas; se chove, guarda-chuvas brotam - como cogumelos - de suas mãos. Eles já estão ali, atentos para oferecer o produto que demandarem.

Mas voltemos ao protagonista, o camelô da Praça XV do primeiro parágrafo: ele vende compulsivamente e por isso não usa guarda-chuva; afinal, suas mãos estão ocupadas em pegar o dinheiro e entregar a mercadoria. Observo-o de longe. Em cinco ou dez minutos seus guarda-chuvas acabam; ele sorri, ajeita os bolsos e segue, sob a chuva forte, sem qualquer proteção. Ele vende sombrinhas, mas não possui uma sequer para voltar pra casa ou para o ponto onde pegará mais guarda-chuvas para continuar vendendo.

O camelô é “antes de tudo um forte”. É um homem que sai de casa e trabalha nas ruas, a pé, sem a proteção de um escritório, de uma instituição, de uma pessoa jurídica; e ainda sofre com a repressão. Para o Estado, ele é um ocupante irregular do espaço público, um vendedor de mercadorias de origem e qualidade duvidosas e, principalmente, uma loja ambulante que não rende tributos aos cofres públicos.

Não sei se estou correto, mas penso que os camelôs de hoje descendem dos “escravos de ganho” de outrora. Pra quem não sabe, esta espécie de negro escravizado realizava tarefas remuneradas - geralmente a venda de guloseimas e a realização de pequenos reparos pelas ruas do Centro -, no período colonial e no Império, entregando ao seu proprietário uma quota diária do pagamento recebido. Era comum os “escravos de ganho” conseguirem acumular pouco a pouco o dinheiro que ganhavam e, depois de algum tempo - geralmente muito tempo -, comprar a própria liberdade. Podem-se incluir também entre os “escravos de ganho” as negras que se prostituíam para pagar a cota diária aos seus senhores brancos - o sexo também era uma das mercadoria oferecidas neste contexto.

Apesar de todo discurso de incentivo aos empreendedores que o sistema no qual vivemos profere, os vendedores ambulantes são perseguidos pelo Estado. Ora, o capitalismo ostenta a figura do "self-made man" como o ápice: há, segundo tal discurso, um mundo de oportunidades e se você trabalhar, inovar, empreender, colherá os frutos do seu suor, com base na propalada “meritocracia”.

Desta forma, o camelô, o homem que vai às ruas para vender seus produtos - e assim age porque não encontra espaço no mercado formal (cadê o mundo de oportunidades?) -, não deveria sofrer repressão do Estado, mas incentivo, na medida em que ele tenta conceder a si mesmo o que o próprio Estado e o mercado formal não lhe oferecem.

E o Estado, conforme o discurso (neo)liberalista, não deve intervir o mínimo? Se o mercado abre espaço para os camelôs, não deve haver repressão estatal à atividade - “laisse faire...”, deixem que vendam e prosperem, as leis do mercado são perfeitas, não é mesmo?!

Vender balas, livros velhos, guarda-chuvas, cds, dvds, eletrônicos asiáticos etc. é uma opção - ou falta de opção, melhor dizendo - para estes homens que vivem em comunidades segregadas (“segregação compulsória”), onde transitam traficantes armados e jovens provenientes dos condomínios (castelos seguros - "segregação voluntária") [1], que os procuram para comprar drogas (ou seria "Soma"?). [2]

O refrão “eu podia estar matando, eu podia estar roubando, eu podia estar vendendo drogas” é real, apesar de parecer um canto distante, ilusório. O pior é que de fato entre as opções figuram estas. Mas eles também podem ser catadores de papel ou latas de alumínio ou serem músicos, poetas, pintores, dançarinos - artistas em geral - ou servidores públicos, empregadas domésticas, professores, advogados etc. Porém, quantos médicos e advogados que nasceram e cresceram numa favela conhecemos?

A verdade é que vendedores ambulantes existem em toda parte; trata-se de um mais “problema global” para o qual se buscam apenas soluções locais. Por que estas pessoas vão a rua com um tabuleiro nas mãos para vender coisas? Parece-me que elas sobraram: o mercado as acolhe (porque as pessoas apesar de reclamarem da ocupação do espaço público continuam comprando suas “duvidosas” mas baratas mercadorias), sob o nome de “irregulares”, “informais”, “marginais”; é um acolhimento discriminatório, semelhante ao que se confere às drogas ilícitas e à prostituição, que são produtos consumidos com avidez, embora de forma silenciosa.

Quem pensa que o “problema” (ou seria uma solução?) é atual e restrito ao solo nacional engana-se. Anatole France escreveu um belíssimo conto sobre “Jérône Crainquebille”, um vendedor ambulante francês, que, por não obedecer imediatamente a um guarda municipal, o qual o mandava prosseguir com sua carrocinha de legumes (a eterna questão do espaço publico nas grandes cidades), acaba preso cautelarmente, a princípio; e, julgado - com ampla defesa e contraditório (como é justo o Judiciário!) -, termina condenado por uma frase que não proferiu. O conto merece ser lido, não o recontarei aqui; um trecho precisa ser citado, no entanto:

“A justiça é administração da força, (...) Desarmar os fortes e armar os fracos seria mudar a ordem social que eu [juiz] tenho que preservar. A justiça é a sanção das injustiças estabelecidas”.[3]

Escrevi há algum tempo um pequeno texto chamado “nadando na fumaça”:

"Muitas semelhanças há entre os meninos que circulam entre a fumaça, nos sinais de trânsito das grandes cidades do Brasil, e os garotos que nadam ao redor de navios no Caribe.

Os pequenos do Caribe acompanham, nadando, a chegada e a saída de transatlânticos aos portos de suas cidades. Os turistas, dos luxuosos balcões, jogam-lhes moedas, e os meninos mergulham bem fundo para alcançá-las. O tempo para ganhar os centavos é o do mergulho - perdura enquanto os pequenos e cansados pulmões suportam.

Aqui, o sinal é o cronômetro que determina a ocasião para se ganhar a esmola: a luz vermelha permite o trabalho e a verde manda os garotos à calçada. Os carros seguem, deixando-lhes trocados e fumaça. Então, esperam os meninos, ansiosos, que o sinal escarlate lhes ilumine, uma vez mais, o palco do asfalto: não são cortinas que se abrem, mas janelas de carros, e os espectadores têm pressa. Não há tempo para o desumano espetáculo da miséria."

Mas tudo isso parece ser mera ilusão. Não são crianças que vendem balas nos sinais nem homens que perecem sob a chuva, vendendo sombrinhas a R$ 5,00. Não olhamos seus olhos, mal ouvimos seus refrões monótonos; só enxergamos as mercadorias que flutuam pelas ruas.

Notas:

[1] O conceito de "segregação voluntária" é de BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. “Sobre a dificuldade de amar o próximo” P. 97 e seguintes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2004.

[2] "Soma" é a droga de "Admirável mundo novo", de A. Huxley.

[3] FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens. Tradução de João Guilherme Linke. São Paulo: Ed. Difel, 1986.