O coração de quem ama fica faltando um pedaço– crônica de reminiscências
 
O ano começava com ela fininha, alva, ignorante.Como um padre recém formado que nunca ouviu a confissão de um pecador.
 
No meio do ano, era impossível fechá-la. Ter uma agenda gorducha era a metáfora da vida.Quanto mais papéis, guardanapos do Mc Donalds, ingressos de cinema estivessem grudados nela, mais feliz a adolescente era.Como se a felicidade pudesse ser quantificada.
 
A agenda era uma companheira.Mais que um diário.Escrevia nela meus medos, alegrias, decepções e ela, como uma boa ouvinte, aceitava tudo sem julgamentos.Folhas extras de caderno eram coladas para dar vazão aos sentimentos em forma de palavras.Quer dizer, palavras não, usava códigos para cada letra do alfabeto para proteger minha escrita de leitores indesejáveis. Demorava horas para escrever e tantas outras para decifrar aqueles símbolos.Um coração para a letra A, um quadrado para letra D, e assim ia.Um trabalhão!
 
Aos treze anos de idade eu era apaixonadíssima por um rapaz chamado Gilson.Ele trabalhava perto da minha casa e eu inventava motivos para passar em frente ao comércio, mais de uma vez por dia só para vê-lo.Quando ele aceitou responder ao questionário do meu caderno de perguntas, minhas pernas bambearam.Sorvi cada linha que ele escreveu: enfim, eu “sabia” tudo sobre ele: o nome completo, a idade, o signo, quem ele levaria para uma ilha deserta...Bem, não era eu, era a Claudia Raia.Mas eu entendi: eu achava lindo o Mel Gibson, o Tom Cruise e o Rob Lowe também.
 
Um dia, o inusitado aconteceu: durante uma conversa ele deu-me um Bis.Aquilo era bom sinal.Fui para casa, enchi a minha agenda com minhas impressões românticas sobre o “presente”.Coloquei o chocolate num saquinho, fechei-o e grampeei-o em minha agenda.Comer o doce? Nem pensar! Aquela era a lembrança mais doce que eu tinha do meu amado!
 
Todas minhas amigas de escola apoiaram minha decisão de manter o Bis ali, intacto. Tê-lo recebido era uma prova de amor, não comê-lo era outra maior ainda. Dia após dia, eu relia aquela página açucarada, com a alma povoada de sonhos.
 
Ao entrar no meu quarto, numa tarde, após voltar da escola soltei um grito e logo comecei a chorar.Meu sobrinho de três anos e meio (o da crônica “Os seus vieram lhe buscar”) havia dado uma mordida no chocolate especial.
 
Meu coração ficou faltando um pedaço.
 
 
(Maria Fernandes Shu – 30 de julho de 2009)


Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 30/07/2009
Reeditado em 30/07/2009
Código do texto: T1728154
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