FLORES E CHUMBO
Esta semana li várias crônicas sobre o período em que os homens de verde não representavam esperança e, com suas botinas calavam vozes, pisavam sonhos, destruíam sementes, semeavam terror regados a sangue, suor e lágrimas. Vivi este período em diferentes fases.
Lembro de, ainda menina, ouvir meu pai dizer: agora sim, o país vai pra frente”. Não havia mais a ameaça “vermelha”. E eu passei a dormir tranqüila, sem medo dos comunistas que comiam fígado de crianças. Não sabia que meus sonhos eram embalados por cantigas de terror, que inocentes sofriam horrendas torturas nos porões da ditadura. Não podia imaginar que pessoas pudessem morrer porque pensavam diferente. Meus sonhos infantis não alcançavam os pesadelos de um país mergulhado no medo e no silêncio povoado de ameaças.
Na adolescência comecei a perceber que aqueles coturnos pesados, apesar de não pisarem meus pés, machucavam meus sonhos, tolhiam minha liberdade. Ingressei nas lutas estudantis. Fui expulsa do colégio, acusada de anarquista, e tudo que eu queria era continuar acreditando em meu país.
Lutei o bom combate, reneguei a luta armada, pois nunca acreditei que fuzis fossem a melhor arma para combater a violência\injustiça. Preferi cantar com Vandré e acreditar nas flores vencendo o canhão. Procurava não ver o mundo como o lado do bem e do mal, tentava encontrar o equilíbrio e muitas vezes chorei o pranto dos que traiam a nossa luta sem coragem de nos dar um abraço de despedida.
Quantos foram calados em troca de emprego, cargos, salários! Eu não conseguia condená-los. É difícil ter ideologia com os filhos chorando de fome; mesmo assim me negava a seguir este caminho. Paguei caro. Mas a moeda que me ofertavam era repugnante, não cabia em meu bolso.
O mais paradoxal é que apesar das amargas lembranças dos tempos de chumbo, também guardo boas recordações daquele período. Foi meu despertar para vida, um paradoxo, pois muitas vidas foram ceifadas. Famílias destruídas. Mas nem tudo era sangue, se havia bombas explodindo no Rio Center, jogando sonhos pelo ar, também havia o despertar dos sonhos, a paixão pelo magistério que brotava com toda força, a certeza de querer construir o meu próprio jardim.
Grande parte desse período eu vivi colada aos livros, em clubes de jovens, grêmios, sindicatos, grupos de teatro. Ali comecei a erguer as colunas que sustentariam minhas futuras construções. Usei material de primeira. Acreditei na força dos sonhos e da verdade. Muitas vezes tive que juntar as pedras nos escombros, jogar fora os botões que morriam antes de desabrochar, semear sementes e ver o vento levando-as para longe.
Vi plantações inteiras serem destruídas por pragas que nasciam na incompreensão, ervas daninhas que cresciam embaixo de nossos olhos disfarçados de flores do campo. Inseticidas contaminados pela inveja, deslealdade e desonestidade. Sementes alteradas (e nem havia os transgênicos) pelo vício do poder.
Não foi fácil. Mas o sol sempre desafia as nuvens e volta brilhar... E as flores insistem em continuar colorindo os campos... Apesar dos canhões.
Um Hino de Liberdade
https://www.youtube.com/watch?v=33-bMTOlvx0