DDD - Mais excertos

Ele procurou-me. Elegante, garboso, um bigodinho e bastante gomalina no cabelo. Lenço colorido, dependurado do bolso do colete; sapatos lustrados com verniz (uma bengalinha marrom aparentemente para ‘constar’). Confessou-me, reservadamente, ser um Deus, um ser onipotente, onisciente, esses papos. Suas ubiqüidades e ambigüidades, seus êxitos e sucessos (ele não possui dramas ou angústias, Ele é feliz e orgulha-se de sua felicidade).

Mostrou-me um cartãozinho dourado “Deus”(não havia endereço para contato). Propôs-me ‘amizade’, conluio, um ‘pacto’: apregoa-me planos miraculosos, seus ‘projetos’ e ambições (Ele não é humilde). Pretende ascender-se (quem sabe ascender-me?), ser algo mais que um simples Deus; Ele revela com um estranho orgulho, possuir suas ‘ganâncias’, pretendendo-se um Deus com mais e mais poderes.

Eu não, eu sou – e eu o sei – um Deus velho e decadente, já exausto do velho jogo da eternidade, do antiquíssimo jogo da imortalidade (pois, todos sabem, cansei-me de ser imortal).”

“’Ele voltou. Tenta-me. Assedia-me com a felicidade, a alegria, o prazer. Fala em ‘novos tempos’, ‘realizações’, revela-se ‘otimista’. Diz-se ‘viciado em não morrer’. Explica, didático: ‘não saberia viver a expectativa da morte’, do gran finale. Não ama os cemitérios, os ataúdes, as lápides, ignora os enterros, velórios, odeia procissões ou ‘missas’; é um Deus repleto de ‘manias’, ‘superstições’, seus ‘truques’, como gosta de dizer. Reconheço: é um Deus por demais humano (e no entanto não possui aparentemente contradições ou idiossincrasias, não tem defeitos!; Ele sugere, de fato, uma singela, ilusória e pura ‘limpeza’, uma assepsia forçada, forjada e grosseira). De onde, pergunto, Ele surgiu? Qual a sua finalidade e propósitos? Contrapor-se, talvez, a mim? Desafiar-me? Mas eu já desafio-me, já contraponho-me a cada dia! Não preciso para isso da ajuda de outros deuses!

Convidou-me a seus ‘passeios’, seus ‘divertimentos’ (engraçado: Ele, como Eu, sempre anda só, sem companhias). Poderia leva-la, caso quisesse (como Ele sabe d‘ela’? ah!, Ele é Deus!) Recusei. Recusei-me, na verdade. Alem do mais ‘ela’ não é seu tipo (Ele confessou-me, cínico, gostar de ‘outras’ mulheres, ‘muitas mulheres’). Ele, na verdade, não passaria de um Deus amador. Eu sim, seria (in)felizmente o Deus profissional.”

“O meu tempo é um tempo nu, nu e envergonhado, um tempo pudico, que enrubesce, traído por si mesmo e pede, suplicante, riso amarelo, seus trajes.

Um tempo jovem e imaturo e inexperiente. Um tempo nascituro.”

“Alguém disse certa vez, foi em um inverno particularmente rigoroso, que nossos egos estariam se isolando, estanques entre si (cada ego estaria ilhado num universo particular, só dele. Seriam várias redomas e cada redoma seria um universo, uma dimensão personalizada). Antes, argumentam, os egos, coletivos, comunitários, ‘cidadãos’, ‘democráticos’, seriam intercambiáveis, haveriam conexões diversas e complexas entre eles. No entanto, medito, nunca consegui (pois nunca quis conseguir) dividir-me com os ‘outros’, o fato é que a consciência de Deus deve (precisa) ser una e solitária. Isolada e triste – como eu. (...pois na realidade sempre senti-me só: eu continuo e persisto solitário quer esteja em contato com uma ‘multidão’ (no carnaval, por exemplo) ou dentro, imerso em meu mundo, em meu incomensurável.; ...pois, indolente – mas estranhamente exausto – estou sempre apaixonado pelo meu silencio...minha mudez;...normalmente dizem-me ‘estranho’, ‘insólito’, mas aqui no infinito, no absoluto, sou (in)felizmente normal).”

“...quem confiaria num Deus com voz aguda? Eu não confiaria-me...”

“Ele me persegue. Percebo que deseja desafios, almeja duelos, quer um outro Deus para superar, para competir (é um Deus brincalhão e peralta, reparo; na realidade Ele não é um Deus sério e composto, é, afinal, um Deus humano).”

“Sou um Deus reticente e grávido de certas ‘alusões misteriosas’. São as minhas outras dimensões, meus outros universos (na realidade, acredito, meus verdadeiros universos). Pois vivo sempre numa angustiante e pequenina ante-sala, numa sala de espera aguardando ansiosamente uma importante audiência que eu sei jamais ocorrerá (...pois eu, (in)felizmente tenho plena consciência de minhas fantasias, minhas quimeras e utopias. Iludo-me, eu sei, mas sei também que estou a enganar-me...pois eu não apenas sou um Deus velho e cansado...sou principal e fundamentalmente, um Deus obsoleto...”

“...pois a verdadeira questão é a ineficácia, a inocuidade do suicídio...”

afontoura
Enviado por afontoura em 29/07/2009
Código do texto: T1726232