DEFUNTO ENSABOADO

Nesta madrugada o pequeno hospital de Buriti Alegre, interior de Goiás, ficou pequeno pra atender tanta gente. Cheguei atrasado ao local, mas me contaram de um número grande de pessoas saindo com talas de madeira nos braços e pernas por conta da falta de gesso.

A fila de acidentados formada do lado de fora da unidade médica chamou a atenção não só dos curiosos, mas também de meia dúzia de vira-latas famintos e esperançosos por um naco daqueles suculentos ossos que se mostravam em várias fraturas expostas.

Era o povo gemendo de um lado e tangendo os cachorros do outro. Zé de Rita foi um que se descuidou e teve de brigar com um deles que queria levar um pedaço da rótula do seu joelho. Se Rita não tivesse acudido e lascado uma pedrada bem no meio do focinho do atrevido era capaz do marido ter ficado sem a peça articulatória da perna direita. Ô raça ruim é essa de vira-lata.

Tudo começou por volta das cinco da tarde quando o menino Deyvis chegou correndo a porta da casa paroquial. Tinha percorrido os vinte e cinco quilômetros que separam o sítio onde morava até a cidade, em menos de uma hora. Bateu apressado na porta e quase sem fôlego nos contou sobre a morte de seu pai, Benedito Bananeira. O velho passou mal enquanto trabalhava no roçado de banana e sem mais nem menos caiu mortinho com a venta enterrada no barro do chão.

Padre Ozório não se encontrava na cidade. Tinha ido à capital, chamado pelo bispo, para uma reunião sobre os preparativos da festa do padroeiro São Sebastião. Provavelmente só voltaria na tarde do outro dia e na casa paroquial estávamos só eu e o amigo Toninho, ambos aspirantes a vaga de seminaristas.

Na falta do pároco resolvemos ir até a casa do falecido e rezar em favor de sua alma. Nem sei se precisava, pois um trabalhador rural paga seus pecados todo santo dia no cabo de uma enxada.

Ainda não estávamos por dentro das ações religiosas que deveríamos tomar, mas naquela hora foi o primeiro pensamento que nos chegou à cabeça.

Sem muita demora saimos naquele finzinho de tarde chuvosa a percorrer, a pé, o caminho até a casa do morto. Depois de muita chuva na cara e lama nos sapatos chegamos à humilde moradia por volta das oito da noite.

Era um ambiente pequeno composto por uma sala, dois quartos, uma cozinha e uma varanda coberta em torno da casa. Naquela hora mais de trinta pessoas estavam lá fora a conversar sobre o ocorrido. Enquanto isso, do lado de dentro, a sala e a cozinha já estavam lotadas com mais outro tanto de gente se espremendo umas nas outras. Dona Maria José, esposa do recém falecido, tava na beira do fogão à lenha preparando mais uma panela de café pra servir ao povo no intuito de aquecê-los do frio daquela noite molhada.

Notícia ruim parece praga, num instante se espalha. Num raio de cinqüenta quilômetros quem ficava sabendo da notícia corria pra prestar suas condolências à família enlutada e se despedir do velho amigo. Benedito era um homem religioso e prestativo por isto muito querido na vizinhança.

Eu olhei pra um lado e pra outro e não vi o defunto. Geralmente eles são velados na maior dependência da casa e lá na sala ele não estava. Fui informado por Josias, o filho mais velho, que ele se encontrava no quarto estirado na cama. Com muito custo, conseguimos entrar no recinto e reparamos que o coitado ainda estava todo sujo de lama. Trouxeram o homem e colocaram ali sem ao menos tirar a lama de cima do corpo.

Pedimos a Josias pra trazer uma bacia com água e um pedaço de sabão. Depois de uns dez minutos ele conseguiu atravessar os cômodos da moradia e chegou com os apetrechos para darmos início ao trabalho de limpeza do finado.

As juntas do morto já estavam ficando duras só com muito trabalho e jeito colocamos o velho sentado dentro da bacia. Pedi a Toninho pra segurar Benedito enquanto eu ensaboava e passava uma bucha nas partes mais sujas. A água foi ficando cada vez mais enlameada e Josias foi até a cozinha providenciar mais um balde pra podermos finalizar o trabalho.

Num momento de descuido o corpo pendeu pra um lado e perdeu o equilíbrio. Toninho não teve força suficiente pra agüentar com o peso e deixou o velho escorregar. Tentei segurar, mas como estava com as mãos cheias de sabão, meu esforço foi em vão.

O quarto não possuía porta só uma cortina de pano estampado com desenhos florais separava-o do ambiente da sala. Sem dar tempo pra nada nem ninguém, o defunto nu e ensaboado entra com os olhos arregalados escorregando ligeiro pelo chão passando por entre as pernas da pequena multidão que lotava o recinto.

Foi neste momento, caro leitor, que começou a confusão. Vi neguinho pulando pela janela como se estivesse mergulhando em um rio. A porta ficou estreita pra sair tanta gente de uma vez só. Parecia o estouro de uma boiada dentro da casa. Não sobrou absolutamente nada no lugar. Teve gente saindo até pelo telhado.

Na cozinha a bagaceira foi maior. A panela grande com água fervendo pro café derramou em cima do povo que saía numa gritaria infernal. Quem estava do lado de fora queria entrar pra ajudar e os que estavam dentro, doidos pra sair. Mas como, se não tinha jeito. Foi gente pisoteada e queimada pra toda banda.

Entre os poucos sem ferimentos graves estávamos eu e Toninho. Como nós ficamos do lado de dentro do quarto sofremos apenas escoriações leves.

Depois de prestarmos os primeiros socorros e encaminharmos as vítimas mais graves para o hospital o dia já estava clareando. Foi aí que nos lembramos do defunto e voltamos a procurá-lo. O coitado, neste momento, tinha ido parar lá perto do galinheiro, no fundo do quintal, levado pela correria. Ajeitamos o bichinho, vestimos a roupa e rezamos um terço junto às poucas pessoas que sobraram do incidente.

Colocamos o pé na estrada e rumamos pra cidade atrás de notícias do povo. Já passavam das duas da tarde quando chegamos ao hospital. Graças a Deus os últimos dois feridos já estavam sendo liberados.

Está lá registrado no livro da casa de saúde os nomes de todas as pessoas atendidas naquele dia. Foram mais de quarenta e cinco, um recorde para o município. Também está lá, registrado no livro de anotações de padre Ozório, os nomes dos dois candidatos a seminaristas que menos tempo demoraram na função, um recorde para a paróquia.

Quando Deus quer, ele quer. Quando Deus não quer, ele não quer e pronto.

Se o defunto não fosse metido a malassombro no meio da sala era capaz de Toninho e eu termos nos tornados bons padres.

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 28/07/2009
Reeditado em 02/08/2009
Código do texto: T1723728
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