Refletindo

Ela acabara de acordar. Todos os dias o mesmo ritual: chinelos, banheiro, chuveiro, toalha, espelho – O reflexo – maldito reflexo! Tão cheio de sinceridade, tão cheio de si.

Com o tempo – ah, o tempo – ela acabando fazendo com o espelho, aquilo que se costuma fazer com aquilo (coisas ou pessoas) que nos desagrada – evitar, fingir um sorriso ou apenas destinar um olhar superficial.

Eu tenho uma teoria que é adequada a este assunto: “Espelho, caixa eletrônico e balança, são coisas que eu só visito quando sei que me darão boas notícias”

O que significa evitar sua presença nos complexos e caóticos dias de TPM – seria como abraçar um cacto, ligar para a arqui-rival ou fazer autoacupuntura – por que diabos alguém torturaria de tal forma a si mesmo?

Só o espelho tem o poder hipnótico de nos prender e nos mostrar aquilo que nem sempre gostaríamos de lembrar. E não me refiro apenas ao que ele reflete, mas sim e principalmente a tudo aquilo que refletimos perante ele. Autoimagem vai muito além da aparência e mesmo a aparência é um conceito relativo – a forma como nos vemos não é a verdade universal – cada olhar é ímpar e capta em nós diferentes nuances, de acordo com aquilo que trazemos a superfície em determinado dia e com aquilo que o próprio observador traz em si.

O mundo não nos enxerga. Quem nos vê, com olhos de ver, não apenas de olhar, são as pessoas e cada uma delas é um mosaico de memórias e emoções, cuja pequena fagulha é conosco trocada a cada olhar. Por essa razão, o rosto de uma pessoa, sobretudo seu olhar, é algo que exige o nosso respeito – seja ela quem for – pois traz em si o testemunho de uma vida, de uma existência única e, por nós, ainda desconhecida, por maior que seja a intimidade existente.

Já tentou, ao espelho, encara-se nos olhos? È uma tarefa muito mais difícil do que se supõe. Um momento de real e absoluta intimidade, geralmente e inconscientemente evitada. Olhamos nossas curvas, procuramos nelas defeitos, esbravejamos contra as rugas e todo tipo de sinal - rejeitamos as marcas do tempo, pois nela trazemos escondidas nossas mais profundas verdades – não aquelas que podem ser facilmente disfarçadas por uma boa maquiagem ou intervenção cirúrgica, mas aquelas que silenciosamente carregamos no coração (metafórico e às vezes até no anatômico).

“Eu só posso me voltar à unidade se eu souber aprender a respeitar a pluralidade”

Foram estas as palavras que ouvi numa aula de latim e que me levaram a, nesta crônica, refletir (agradecendo desde já ao professor Oscar Brisolara, fonte inesgotável de sabedoria, generosidade e inspiração). Quando enfim aprendermos a olhar o mundo com “olhos de ver”, percebendo nele as pessoas que o constituem e nestas a singularidade que representam, estaremos mais próximos de nós mesmos, preparados para encarar e refletir em nosso próprio espelho.

Numa poesia recente, uma tal de “Ju Blasina” disse que “Vergonha de si mesmo é patético e beleza, vai muito além do estético”. Repetir isso como um mantra talvez funcione, talvez não. Evitar o espelho em dias de TPM, talvez funcione, talvez não. Mas deixar de “refletir” sobre toda e qualquer “superfície de contato”, isso certamente é impossível!

Então, antes de criticar, “reflita-se”!

*Publicada no Caderno Mulher/Jornal Agora em Junho de 2009