Nona Corina
Nona Corina tinha \"problemas\" nas duas pernas. Diziam que ela tinha ossos de vidro, pois se partiam à toa. Usava uma cadeira de palha para se apoiar e se locomover pela casa a passos de tartaruga. Ela era a segunda esposa do meu bisavô Estéfano e morava com o primogênito deste, o Nono Beppi.
Apesar de suas limitações, Nona Corina trabalhava o dia inteiro na cozinha, enquanto todos iam para a roça ou trabalhar no armazém. Cozinhava sentada na boca do fogão, lavava louças apoiada à pia, fazia crochê e os remendos das roupas que usavam na lida do campo, sentada em um banco ao lado da sua cama. E ainda fazia coroas. Coroas para os mortos.
Eu me encantava com a rapidez com que ela criava as rosinhas de papel crepon e ia colocando no arco de arame.
Eram tantas as cores! Brancas e azuis para os pequeninos e as virgens. Lilazes para os adultos. A purpurina colocada nas beiradas das flores deixavam meus olhos cintilantes.
Em vésperas de finados, o quarto dela virava atelier e aquilo tudo era uma festa para a netarada (na verdade, bisnetarada).
Eu tinha uns cinco anos e gostava de ficar com ela enquanto minha mãe tinha algum compromisso fora de casa. E eu tinha minhas razões.
Além de poder ficar na cama (altíssima) com ela, eu ainda podia ter uma chupeta, que era proibida pelos meus pais, mas que a nona Corina me dava na maior sem cerimônia. Eu ficava horas, ao lado dela em silêncio enquanto ela rezava, sentada no seu banco ao lado da janela, de onde avistava a rua quieta.
Eu ficava imaginando que ela rezava para os mortos de todas aquelas coroas que fazia a cada ano. E eram muitos! Enquanto isso, eu cochilava, embalada pelos murmúrios da oração.
Sua intimidade com a morte era tanta que mandou construir o seu túmulo no cemitério da cidade. Essa coisa toda era bizarra demais para nós. Para ela, uma simples precaução.
Ela demorou a usar seu lugar no cemitério. Partiu em dia de temporal e muita chuva. Eu já era moça e estava longe, na capital, fazendo faculdade.
Lamentei, mas não tive lágrimas para a Nona Corina. Apenas orações, como ela fazia para seus mortos.
Ela devia estar feliz, andando com suas pernas, agora sadias, e fazendo flores, muitas flores de papel crepon.