Música para ouvir

Antes de qualquer coisa, pense numa música.

Uma trilha sonora para a leitura desta crônica – eu até poderia indicar alguma, mas não quero influenciar sua escolha.

E aí, pensou? Ou já estava com alguma na cabeça? Neste caso, melhor ainda!

Já percebeu como algumas músicas invadem nosso pensamento, (geralmente as ruins e em um trecho único que se repete sucessivas e infinitas vezes) e, quanto mais lutamos para ignorá-las, mas insuportáveis elas se tornam – é a teoria da “música parasita” – conhece? Provavelmente não (inventei agora). Os alemães chamam a este fenômeno de Ohrwurm, literalmente: verme de orelha.

Pode afetar qualquer indivíduo com capacidade auditiva, independe da idade. A duração varia entre alguns instante e semanas (ou até mais, em casos mais graves). Os principais vetores de contaminação são: dingos publicitários de todo o tipo (inclusive, e de grande periculosidade, aqueles emitidos pelos caminhões de gás), toques de celulares alheios, além de vizinhos e amigos de péssimo gosto musical que teimam em “compartilhar”, mesmo contra a sua vontade, a última música daquela banda, ou cantor que você detesta.

Há quem lance mão do velho ditado “se não pode vencê-los, junte-se a eles”, deixando a tal musiquinha rolar e até cantarolando-a, o dia inteiro, até contaminar outro inocente, na esperança de assim, talvez livrar-se “do mal”. Eu proponho outra estratégia: começar o dia escolhendo uma trilha sonora para embalar seus passos e pensamentos antes de ser pego de surpresa por uma dessas melodias mal intencionadas!

È incrível o quanto a música se relaciona com nossos sentimentos. Pode tanto refleti-los quanto influenciá-los. Às vezes sua letra parece ter sido escrita para nós – e até nos apropriamos de um trecho para expressar nossas idéias em conversas ou declarações de amor. Noutras, é o ritmo que nos seduz (especialmente nas músicas estrangeiras cujo idioma não nos é familiar) e muitas vezes quando descobrimos o que elas realmente dizem, o encanto e nos sentimos traídos, por ficar cantarolando alegremente um “lá lá lá, tunti, tunti” que na verdade quer dizer coisas horríveis ou obscenas (mantenham as crianças longe do hip hop).

Fora estes pequenos incidentes, as músicas costumam ser excelentes companheiras e cada vez mais presentes em nossas vidas. Nossos agradecimentos aos avanços tecnológicos que encolheram os enormes Walkmans em Diskmans, e estes em “mpcoisa” (3, 4, 5, mil) e celulares com a mesma função. O fato é que, pra onde quer que se olhe encontra-se orelhas com fones acoplados – tem pra todo gosto e tamanho – parecem ter virado item obrigatório. Talvez daqui a pouco inventem um chip q se insira atrás da orelha e pronto: “zilhões” de músicas carregadas por energia cinética! Seria o fim da conversação trivial que antes se estabelecia como mais freqüência, em lugares públicos, como ônibus, filas e salas de espera e hoje e tão rara que causa estranhamento.

O mais comum é ver pessoas caminhando lado a lado, silenciosamente, com seus fones, olhares e mentes distantes, viajando em seu ritmo particular e individual. Você nunca tentou adivinhar, pelo rosto de alguém, “o que provavelmente a ele está ouvindo?”, numa dessas horas fatídicas em que acaba a batera do seu próprio mp3 e você se vê obrigado a matar tempo de outras formas. É um jogo bem divertido, mas infelizmente para saber se você ganhou ou perdeu, seria preciso tirar o “alvo” de sua viagem auditiva e pedir educadamente a resposta. É bem provável que ele lhe ignore – afinal, está ocupado – mas, com sorte, você pode acabar dividindo um fone, e assim conhecendo novas e inusitadas músicas e pessoas!

Leve a música consigo, só não deixe que ela o leve pra longe demais.

E então, já decidiu qual será sua música de hoje?

Aí vai um trechinho da minha:

“...Música para esquecer de si, música pra boi dormir. Música para tocar na parada, música pra dar risada. Música para ouvir, música para ouvir, música para ouvir...”

*Arnaldo Antunes - Música para ouvir

- Publicada no Caderno Mulher/Jornal Agora em Maio de 2009.