LIÇÃO ECOLÓGICA (Alguém fez isso!)

Claudeci Ferreira de Andrade

Da vila Galvão para o terminal do Novo Mundo não é muito longe, mas para mim, foi uma eternidade. Já eram 6 horas da tarde quando estava de volta. Tive que dividir, no ônibus, um banco de dois assentos com uma jovem de mais ou menos 16 anos que me fez refletir em coisas profundas da alma: o que é nossa vida?! Fui motivado a chegar a respostas deprimentes ao contemplar sua aparência que era digna de compaixão: tinha os cabelos tingidos de louro, amarfanhados, na verdade era uma espécie de matiz esfumaçado de preto com louro; seu cheiro era uma mistura de urina com álcool; suas roupas, que mal cobriam as vergonhas, não tinham cor definida, eram pura sujeira. Olhei para os seus pés, estavam descalços, sujos e com unhas crescidas.

Encolhi-me em meu canto, quando percebi que ela se movimentou para me dirigir a palavra; que hálito insuportável! Seus lábios estavam inchados e inflamados. Falou-me do aparelho celular que acabara de roubar de um homem bêbado, queria se desfazer do tal objeto rapidamente por medo de ser apanhada pela polícia, então insistia para eu comprar o telefone por dez reais; apenas abanei a cabeça algumas vezes em sinal de reprovação e me virei para a janela, desejando que tivesse mais espaço naquela direção. Mas as circunstâncias forçaram-me a me reportar mentalmente para outro cenário.

Lá fora, visto que passávamos na GO-403, às margens do rio meia-ponte, no meio dele, contemplei uma garça paralisada a espreita de algo que pudesse alimentar-se, já que ela não podia roubar celular para vender. Pensei, tendenciosamente, olhando apenas para mim mesmo, que a situação da garça solitária se assemelhava mais com a minha do que com a daquela jovem. Porém, logo depois, concluí que, por ter de suportar o mau cheiro daquelas águas poluídas e o roçar morno da correnteza opaca na pernas, por horas a fio, de plantão e não ter pescado nada, se é que tinha algum peixe ali para ser pescado, a garça assemelhava-se mais com ela naquele momento! Ora se parecia comigo, ora com ela!

Só contemplando um pouco mais a alteração artificial da paisagem, visível a olho nu, e a contaminação do meio, palpável, pude ver, cá no ônibus, a minha semelhança com a maltrapilha! Que situação a nossa! Por que a garça não tinha suas penas branquíssimas como deveriam ser!? Seria uma camuflagem! Uma nova espécie!? Ou essa contaminação lhe incomodava? Certamente! Corajoso e atrevidamente me virei para minha parceira de viagem e perguntei se suas roupas sujas lhe incomodavam. Não! Justificou-se, dizendo que a culpa era de alguém, assim como o rio a sujou, e alguém sujou o rio. Estremeci pela a evidência de que a jovem também contemplava a garça encardida e tinha as mesmas impressões que eu. Naquele momento, desfizeram-se todas as nossas diferenças, ela também pensava, não apenas vegetava, ou melhor, isso fez a diferença, apreendi. Somos vítimas igualmente. Alguém fez isso e não foi a chuva! Ou seja, Deus!

Encaminhamento de percepção

1- Reflita também sobre a pergunta: O que é nossa vida?

2-Que tipos de vícios relata a crônica e qual é o grau de influência nas situações mencionadas?

3-Qual seria sua reação se encontrasse alguém como essa jovem?

4-Em que circunstâncias a garça suja e solitária pode ser tanto o narrador personagem, quanto a jovem maltrapilha?

5- Por que o narrador chegou a pensar que a jovem não teria sensibilidade suficiente para relacionar as situações?

6- A quem se refere o texto na frase: “Alguém fez isto”?