VI: Anjo de Mim

O AUTO DA PIEDADE

Sete Atos de Consciência

Ato VI: Devas de Mim

Cada um tem o céu que merece, ou que acredita.

Graças a Deus, não nasci tibetano ou hindú, onde a vida depois da morte é meio assim "oriental" demais pra mim. Se bem que sempre achei interessante a vida no céu do mundo islâmico, aquele papo das "virgens"...hum...anyway, aqui estou, estou aqui nesse mundo novo e tão velho pra mim e depois de descobrir que poderia brincar de criador naquele mundo branco, estou meio que consciente em outro lugar. Parece uma casa de campo, mas até agora só conheci bem o meu quarto e o banheiro.

Sim, toma-se banho no astral. Você pensava o quê? Que a gente desencarna e vem parar num céu francês? O banho é tão delicioso quanto o da Terra e sim, me banhei com água, passei sabonete e me limpei, mas por favor, leitor, suba a vista para o chuveiro e tire os olhos das minhas partes íntimas!

Terminei o banho, enxuguei-me e vesti uma roupa branca que parecia com essas vestimentas brancas de terreiro de Umbanda e do lado de fora do banheiro, havia alguém me esperando. Nunca tinha visto o sujeito antes, mas senti que sempre o conheci, sabia até o nome dele: Raul!

Não era o Seixas, mas ele disse que se eu quisesse, ele poderia assumir a forma do cantor, desde que eu ficasse confortável. Disse pra ele que fingiria que todo aquele sentimento pós-vida-na-Terra era simples de entender e que já estava acostumado com tanta coisa nova que parecia antiga; ele riu e comentou que se eu quisesse, ele fingiria também que não sabia que eu achava que virara personagem de romance psicografado e prometeu que assim que eu dominasse o mundo branco, eu entenderia melhor a minha nova situação.

- Vou voltar para o mundo branco? - perguntei, temendo a resposta

- Você já está nele! - ele respondeu e eu fingi que entendi a resposta.

Perguntei por que tinha essa sensação que o conhecia, mesmo sabendo que nunca o tinha visto; daí ele falou:

- É simples: você está se recordando que já esteve aqui antes. Quanto a mim, eu sou o seu Anjo da Guarda. Sempre estive contigo, te protegendo, te guiando, te conduzindo por toda a sua vida na Terra.

Comecei a rir, ele também achou graça.

- Fala sério! – eu disse – Você não espera que eu acredite nessa bobagem, quero dizer, não me leve a mal, mas eu nunca acreditei em“ Anjo da Guarda”? C’mon!!!!

Ele sorria, como se antecipasse cada palavra que eu diria.

- Eu não preciso da sua crença para existir. Tudo o que a mente humana cria e que parece absurdo, desconfie: tem um fundo de verdade.

- Ok, vamos supor, que existe Anjo da Guarda, onde você estava quando enlouqueci?

- Guiando a mão que te deu aquela cafezinho na padaria, por exemplo, ou em outros momentos, aqueles instantes de estranhamento, que te fez lembrar que existia algo maior que o seu ego!

...

- Olha não quero te desrespeitar, afinal, se você é Anjo mesmo, deve ser um bocadinho mais chegado de Deus, mas nunca engoli bem essa bronca que as religiões tem com o ego. Não faz o menor sentido! Caímos na Terra e de certa forma, somos conduzidos a criar uma identidade, formatar um eu, um ego, alguém que pense: " quero um carro, logo eu existo", daí vem as religiões orientais com essa ladainha de "liberte-se do seu desejo e mate o ego!". Eles que matem o ego deles e deixem o meu em paz.

- Vou citar as palavras de Paul Arden, um grande filósofo de porta de banheiro, que te ajudará a refletir melhor sobre isso - disse o Anjo.

- Você não deveria citar algum salmo ou passagem da Bíblia?

- Você não deveria ficar calado e me escutar? - disse o Anjo sorrindo. Como nunca vi un Anjo nervoso e nem quero, decidi ficar mesmo quietinho e escutá-lo.

- Diz Paul Arden:

" É moda entre as pessoas conscientes tentar se libertar do seu ego.

Ora, elas deviam pensar um pouco mais nisso.

Presumivelmente foram equipadas de ego por uma razão.

Grandes pessoas possuem grandes egos; talvez seja isso que as torna grandes.

Por isso vamos fazer bom uso do ego, antes de tentar negá-lo.

De qualquer maneira, toda a vida gira ao "meu" redor."

Toda a vida gira ao seu redor, mas tá aí a graça da existência na Terra, ela também gira ao redor dos outros. O truque é se dar conta, que se ter um ego é inevitável, que o seu ego faça do seu mundo e do mundo dos outros, algo grande, algo que valha a pena. A armadilha é você se apaixonar pelo espelho e se esquecer do ego dos outros.

...

- Posso fazer só mais uma pergunta? - arrisquei.

- Claro! - respondeu o Anjo que pelo sorriso lembrava o Capitão Branquinho, o personagem daquele desenho antigo " A Corrida Maluca".

- Cadê as suas asas?

- Estão lavadas - disse ele - Deixei no varal secando.

Calei o ego, afinal cada um tem o anjo que merece.