A Carta Espelho
Não sei porque perdi, tambem não sei quando. Na verdade, não sei se perdi porque eu não sei se já tive. Não sei se é que existe, ou existiu. Pode ser que talvez eu só queira saber o que procuro.
Na frente do espelho eu sei que falta, sei porque eu não sou eu, mesmo sendo o eu mesmo que me orgulho. A falta que separa o eu do eu que não sou me incomoda, mesmo com o circúlo metálico no dedo, não são as sainhas que estão penduradas no pescoço, nem o quadro-réplica de Klimt na parede branco pérola.
Talvez seja Klimt na parede pérola; as cores de Klimt e o seu próprio traçado não lembram a parede, a parede tão menos lembra a obra de Klimt. Só que se eu tirar klimt a parede ainda será pérola, mas haverá dois brancos pérola, porém não saberei que era Klimt, poderia ser Van Gogh ou Renoir, eles cabem na marca na parede pérola. Só que Renoir na parede não será Klimt, e ao olhá-lo vou me sentir olhando o espelho. Existe uma grande problema pois talvez Klimt também sirva de lâmina de prata, ou mesmo a obra de Klimt seja o branco pérola.
Talvez sejam as sainhas no meu pescoço, afinal porque mais eu as faria em ouro? Porque mais eu as poria entre a gola polo e a pele para que estejam tão junto a mim que eu me esqueça dela até me olhar no espelho. Pego-as na mão mas não posso voltar, negligenciei-as todo o dia. Ao tirá-las do pescoço suado na tarde quente eu sentia latejante a falta da corrente, eu não me importei com as sainhas. Mas será que é só isso que eu procuro? Não, não é, pois antes do círculo metálico eu não coçava o dedo.
Quando eu menino, eu já tinha medo do espelho, eu já fugia dele, era pura corvadia. Eu não queria olhar meu futuro retrato e sentir que eu não sou o eu que deveria ser, e eu já sabia que faltava alguma coisa. Jovem eu era covarde e fugia, como tempo eu aprendi a me inventar e reinventar, e com isso eu fui atrás do que faltava. E este anel no meu dedo é a prova do sucesso de meus esforços, só que não de minha busca.
Acho que é tudo ilusão, pois eu menino fechava os olhos e me perdia, vendo o mundo diminuindo, vendo tudo não existindo, e não sentir mais os cinco sentidos. Naquele segundo transcendente se eu olhasse para o espelho sei que veria o eu que eu deveria ser, o problema é que sempre os sentidos voltavam com a bola que me tocava.
Talvez seja ilusão os meus sentidos esquecidos porque naquele momento eu talvez tenha perdido a busca, e perdi por mero descuido ou falta de tempo.
Chega de espelho, de estufar o peito, deixa-me respirar um pouco.