Inspiração
Ele estava cansado. Não aguentava mais. Ou falaria, ou explodiria. Nenhuma das opções eram válidas.
E num acesso inusitado de fúria, resolveu escrever. Era quando estava fora de controle que a inspiração vinha, junto com suas angústias, sua criatividade fluía, suas emoções conturbadas o faziam rosnar palavras por entre os dentes rangendo, faziam suas mãos compulsivas por registrá-las, enquanto as gritava aos quatro ventos, com fogo nas ventas, ou enquanto as remoía, em silêncio, em prantos.
Seu desequilíbrio o levava ao ápice de sua capacidade produtiva. Sua vida turbulenta o levava ao ápice do desequilíbrio.
Para um escritor, esses surtos criativos são muito proveitosos, mas para um escritor frustrado, não passam de merda mesmo.
Tinha lá aquele maldito bloqueio, ultimamente não conseguia escrever algo que prestasse, nem que passasse noites em claro trabalhando no mesmo texto, simplesmente não funcionava, por algum motivo, não rendia, as ideias eram as mesmas de sempre, nada de novo, tudo denovo. Do outro lado tinha aquela agente desgraçada pressionando, cobrando, lembrando de prazos e datas que ele com certeza não poderia cumprir. "A chance da sua vida", ela dizia, mas que momento mais infeliz pra receber a chance de sua vida, logo naquele momento, naquele inferno de momento, em meio a todo aquele caos, ainda surgiu o maldito bloqueio.
Mas de repente, passou.
Deveria agradecer a ela por isso, depois. Ligaria uma outra hora, pra tentar agradecer o favor de tê-lo deixado à beira de um ataque de nervos, mas isso se ela o deixasse falar mais do que "oi". Ela ficaria irritadíssima com a ironia, mas, ironia ou não, era verdade. Ao querer acabar com ele, salvou sua vida, salvou "a chance da sua vida". A amou novamente por isso, pena que ela era tão insuportável, tão hostil, tão infantil.
Mas o inspirava, querendo ou não, inspirava, como sempre. Mesmo que por escárnio, que por raiva, mesmo assim era sempre ela a sua musa. Se odiou por pensar isso, por pensar que tudo aquilo que escrevia, devia a ela, e só a ela, sua maior fonte de inspiração. Se sentiu um fracasso por depender dela pra fazer a única coisa que sabia fazer na vida.
Isso rendeu boas páginas, a agente entraria em frenesi, mas pro inferno com a agente, ele não se importava nem um pouco com aquela editora, com aqueles prazos, ele não escrevia pra eles, pra enriquecê-los, escrevia porque precisava, porque se não escrevesse, certamente já estaria atado à uma camisa de força.
Agora, com ódio dela, e com ódio de si, as palavras vinham à tona com uma facilidade impressionante, com sua loucura impulsionando-as, tinham um poder incrível, um peso impressionante, uma veracidade assustadora, nada parecido com aquele lixo que produzia mecanicamente pra ver estampado um sorriso babaca na cara dos idiotas da editora e pra ter um pouco de paz, sem o som do telefone tocando o tempo todo com uma tonelada de cobranças do outro lado da linha. Nada parecido com aquele lixo que via todos os dias, em todas as partes, pura mentira, sentimentos forjados, desgraças irreais. De contos de fadas, as prateleiras estão saturadas, o que falta é verdade, é humanidade, é fraqueza, dor, medo, ódio, pecado, é vida. Falta vida, é isso o que falta.
E é isso o que ela lhe proporcionava, emoções e frustrações reais que podia descarregar em parágrafos que gritavam despudoradamente o quão desprezível ele era. O quão desprezível ele, ela e todos eram. Essa sua paixão desgraçada é que lhe dava essa verdade, essa vida.
Foi então que compreendeu.
Não era ela. Não tinha a ver com ela, mas sim com o que ela era pra ele, com o que ele mesmo havia escolhido como motivação, o meio pelo qual poderia sentir sua própria verdade. Seu ódio cessou, mas a inspiração continuou ali, pela sua paixão, e sua paixão não era ela, sua paixão era dele, e só dele, pra ele.
Resolveu ligar, mesmo sabendo que não atenderia. Ligou, e ela não atendeu. Ele sorriu, pegou outro café, e recomeçou a escrever.