TEM MOSQUITO?... TEM!
... Há tempo o nó cego vinha me incomodando com suas pisadelas nojentas. Assentava-me ao rosto, onde, instintivamente, tentava espantá-lo com uma enrugadela de testa, quando não uma piscada extravagante ou mesmo uma assoprada cômica com o canto da boca. Ele voava e voltava. Foi assim por um bom tempo. Saberia, por acaso, o pequeno importuno, do aborrecimento que me causava? Ou seria uma atração natural pelo meu cheiro; meu suor, por exemplo? Andaria a testar suas habilidades em provocar e fugir espetacularmente dos humanos? Tudo eram questões a esvoaçar pela minha cabeça. Olhei em volta buscando uma outra mosca e não a encontrei. Eu me enganara com a nova conjectura que me viera à cabeça: ele não estava se exibindo para uma imaginada companheira! Você, caro leitor, sabe o “por quê” da existência dos mosquitos? É-nos ensinado que a mais insignificante das coisas,--- sob a ótica humana, lógico --- foi criada com uma finalidade; nada foi feito por acaso; na criação tudo teria um fim determinado, harmonioso. Daí, para mim os mosquitos estarem na contramão de tudo, a não ser numa coisa: infernizar a vida do homem e dos animais! Acicatar o homem principalmente, avivando sua paciência no exercício contínuo da importunação. É bem isso. Resignado com a minha descoberta, preparei-me para o combate, seguro de que o seu negócio era esculhambar-me mesmo!
A severa era Vitoriana, visitada através de Dickens, já não a vivia mais, tamanho o aborrecimento causado por aquele atrevido mosquito. Passei, então, a me deter mais nele que no livro, ou melhor, mais em seu inesperado aparecimento e menos nas desgraças dos pobres órfãos londrinos que o grande escritor inglês bem as descreviam. Irritado, pus o livro de lado, retesei o braço e esperei o daninho. O pequeno maldito agora pareceu se dar conta de minha prevenção e sumiu. Continuei imóvel esperando-o. Por um bom momento nada; mexi os olhos em volta e... tudo bem! Nenhum sinal. Peguei o livro abandonado com uma das mãos e, desconfiado, pensei retomar tranquilamente a leitura. Aí, ele veio! Num vôo raso, o matreiro pousou no travesseiro, bem ao lado de meu rosto, enquanto eu aguardava, com a mão armada, que ele se posicionasse num local favorável a levar o tapa. Voou novamente e minha pulsação aumentou com a ansiedade de prever onde o pequeno importuno assentaria. Segui-o com os olhos atentos. Voou, voou, até pousar mansamente no dorso de minha mão preparada para lhe dar o bote fatal, como se soubesse que ali eu estaria impossibilitado de golpeá-lo! Filho da mãe! Pousou e, confiante, veio subindo rumo ao meu pulso, provocando-me cócegas com suas patinhas asquerosas a subir-me o braço. Uma forte sensação de repugnância ao inseto inundou-me de raiva pela impertinência do momento. Ele veio... veio... destemidamente , embarafustando entre os pêlos de meu braço, aumentando em mim a sensação de repulsa e ódio por ele. Era demais! Não me contive e... plaft! Atirei-lhe sem piedade o livro que trazia à altura dos olhos ao mesmo tempo em que, estabanadamente, rebatia-lhe com a mão em cima buscando destrui-lo, vendo-o por toda parte em minha exaltação. Levantei-me num salto, revolvendo as dobras do lençol tentando achá-lo estripado, mas nada; olhei o livro, as mãos, procurando suas vísceras! Em vão!...Sumiu que soverteu! Espantado, procurei-o pelo quarto, esquadrinhando afobado em volta e... decepção! Qual seria sua mágica? Para maior desolação minha lá estava ele, afrontosamente como sempre, na soleira da porta, esfregando tranquilamente as asas com as malditas perninhas.
Em meio à minha irritação, fuzilando o pestinha, surgiu-me as figuras de um Juarez Marceneiro,... Genésio Varjão,... Laércio Bicudo...e tantos outros humanos, nós cegos como ele!