V: Multi-leitura
O AUTO DA PIEDADE
Sete Atos de Consciência
Ato V: Multi-leitura
É óbvio que você continuará depois da morte, pois você já está em dois lugares nesse momento. Não acredita? Morra pra ver!
Estou de volta ao mundo branco, mas já não estou confuso, estou até meio animado. Nesse mundo de possibilidades, posso me tornar tudo. O branco me possibilita um big bang bang big de tinta, aonde minha pena escreve um mundo, dois mundos, multi-mundos, mil leituras.
Eu morri, lembra?
Mas antes estava louco, vivendo de pena e implorando a tua piedade, na carência da minha enfermidade?
Abandonado por teus olhos, escorraçado pelo teu preconceito, catando restos da sua leitura, até que fui trancado, calado e por fim, libertado, para poder criar as minhas flores.
O meu jardim é esse mundo branco.
As minhas flores são essas palavras.
A minha morte é a tua vida.
Precisei morrer para ser recriado pelos teus olhos, pela sua mente, para existir apenas dentro da sua imaginação.
Vivo agora por aqui, mas dependo e ao mesmo tempo não dependo exclusivamente da sua vontade, pois posso a qualquer momento me transformar na vontade de outro que não você. Sim, existo também nos olhos dos outros, fluo por outras visões de mundo. Sou multi-leitura.
Você não é o único par de olhos que há. Há muitos outros.
Pode ir se quiser, você é livre, pode parar de ler se desejar. Pois o mundo que criarei agora, pode não ser aquele que você deseja ler...
Quer arriscar?
Daqui pra frente, você pode ler algo que não combine com a sua verdade, com a sua leitura de mundo, mas se ainda assim, você desejar continuar, é bem-vindo, afinal, se ainda está aqui é porque você talvez já seja o outro olhar, aquele para qual essa crônica surreal está sendo escrita, aquele que dirá: essa é a minha visão do além vida.
Por isso, confia na minha escrita!
Vem?
Continua lendo, vai observando os escritos, penetra comigo nesse mundo branco, onde nada existe e ao mesmo tempo cabe tudo. Mergulha comigo no silêncio, no vazio e veja o que eu vejo, sinta o que eu sinto.
Respira fundo, que eu também farei isso, embora eu não tenha mais pulmões, nem precise de ar, sou um bom fingidor, posso ainda me lembrar o que era respirar.
Ahhhh o ar!
O ar!
Faltou-me ar. Lembro agora como desencarnei. Dor no peito, tento respirar, gritar, o ar não vem, o pulmão grita: aaaarrrrrrrr!!!!
Sinto que estou sendo esmagado, compressado, amassado, reduzido e sendo cuspido, jogado, expulso, parido, feito neném de novo. Mãos gigantes puxam a minha alma para um mundo muito claro que dói a alma, que me faz gritar de dor. Saio por um buraco, sendo tragado para fora da vagina da vida.
Desculpe o palavriado! Mas com o corpo, rompeu-se o cordão de prata e o contrato assinado com você, onde as cláusulas diziam que eu precisava medir bem o que expressava, para viver bem socialmente e em harmonia. Estou além da vida, além do nosso contrato social da sua simpatia.
Aqui desse lado, não usamos a linguagem, a fala ou qualquer coisa parecida com um idioma para nos comunicar.
Comunicação instantânea! Está me entendendo?
Tipo assim, meu: eu penso, você saca, falou?
Tudo é muito estranho. Nada é aquilo que disseram que há! Estou até agora procurando Cristo e não vi sinal algum do que possa parecer com os portões onde trabalharia o São Pedro como porteiro. Não vi o Buda, nem o Shiva, nem mesmo o Padim Ciço! Estou começando a desconfiar que todos esses nomes eram apenas arquétipos do plano terrestre para nos religar ao plano espiritual. Eles devem existir somente por aí, ou estão aqui em algum lugar que eu ainda não vi passar.
Quando eu acordei do lado de cá, foi como se despertasse de um sonho e já vivesse por muito tempo com corpo e tudo por aqui.
Se você me pedisse para explicar como dois corpos podem habitar a mesma alma em lugares diferentes, eu precisaria usar algum símbolo, uma imagem que pareceria para você linguagem de sonho e seria mesmo, por isso eu te aviso: desconfie dos sonhos... desconfie do estranhamento.
E lembre-se que há milhares de outras formas de comunicação além das palavras. Os sonhos usam imagens para falar contigo, o astral usa a sincronicidade, Deus usa os milagres e eu, essa crônica, para te lembrar de que há algo dentro de você que foi esquecido.
Eu havia esquecido disso também, até que nasci desse lado.
Você dirá: é fácil quando se esta no astral!
E eu te direi: depois que me limparam e cuidaram do que eu era além do corpo, me dei conta que eu devia ter lembrado disso por aí, afinal se há uma razão para encarnamos, é para lembrarmos que somos estrelas, mesmo quando estamos dentro da terra.
Sim, entre um branco e outro, comecei a lembrar, que depois de cuspido pela vida, fui parar em um lugar e nesse lugar, eu fui cuidado.
Um lugar bonito, com flores na janela, cantos de pássaro, uma luz dourada bem bonita e diante daquele despertar tão suave, agradeci aos meus mentores, por ter lido tanto livro espírita.