DIAS CHUVOSOS...DÔCES LEMBRANÇAS
Chove intensamente nêste instante.Aliás,choveu o dia todo.Enfurnado,tudo o que sente-se é agonia pela privação daquilo que se faria num dia ensolarado.
Aí,na busca de preencher o tempo, vislumbro o volume de água escorrendo pelas calhas ,como num rodopio,um retrocesso no tempo acaba arremessando-me há mais de cinquenta anos atrás:
Então...
O ciclo das águas cumpria-se em fevereiro numa tarde sufocada à um abraço cinzento de céu.
Quieto lamento de chuva sussurrava choro pelo telhado e da janela do sótão eu avistava os pingos encharcando gerânios ao redor da casa.O quintal mergulhado em poças d´agua e pelo gramado quero-queros exibindo-se em passadas esguias.
Na cozinha de chão batido,troncos de lenha abrasavam trempe e tacho onde as peras de minha infância fundiam-se lentamente num encorpado doce.Um odor adocicado de brotos de figueira,usados como aromatizante,desprendia-se daquela massa cor de âmbar,incensava o velho casarão de madeira,subia pelas escadas do sótão,varava fendas entreabertas entre telhado e vigamento por onde poeira e fumaça, de muito,já haviam gravado suas histórias.
Ao redor do tacho,de lenço e avental brancos,uma silhueta franzina e calada,repetia movimentos giratórios da pá,em busca do "ponto certo" ao doce.
Seu nome?...Maria! "Nhá Teixeira",minha avó paterna;a que trazia nas veias um sangue de bugre,como costumava afirmar com certo orgulho.
Na verdade,os traços meio carrancudos na face, ligeira austeridade no olhar e força na voz emitindo ,sem meias palavras ,tudo o que sentia,causavam como primeira impressão a quem lhe conhecia,estar literalmente diante de uma bugra.Porém,assim que entabulava-se um relacionamento mais profundo ela mostrava-se em sua autenticidade,e a aparente rigidez cedia espaço a uma criatura maleável,acolhedora e meiga ,que exercia muito bem um lado prestativo e humanitário.Era à ela que recorria-se quando da necessidade de remédios caseiros,infusões e chás,a partir de ervas cultivadas em seu proprio quintal.
Boa contadora de causos,gostava de relembrar sua chegada em Irati no ano de 1907;falava com saudades do casebre que edificara às margens de um rio (rio das Antas);de dias ensolarados,animais domésticos e passarada reinando entre o arvoredo.Da solidão das noites cerradas...Céus marejados de estrelas e a melancolia e silêncio do rancho,quando tudo o que ouvia-se era tão somente o crepitar das chamas no fogão de barro, o mugido de animais selvagens pelas nascentes,e "os brados penados" de almas incertas nos escuros caminhos da mata.Do pomar que brotara de suas mãos;das muitas frutas produzidas para os seus doces deliciosos.
A lembrança leva-me ao pontilhão improvisado deitando-se sobre um rasgo que o rio encontrara como atalho;dividia o quintal,formando uma pequena ilha com aspecto de ferradura.
Denominávamos "Ilha dos marrecos".Aves preferidas de vovó, surgiam entre as amoreiras em barulhentas fileiras rumo à correnteza. Feito celebridades nas calçadas da fama,imprimiam os diminutos leques de suas patas na lama acetinada que margeava o riacho.Imagem nítidamente preservada em minha memória.
Haviam costumeiros encontros semanais que reuniam:vovó e tres inseparáveis amigas;Nha Tuca,Nhá Percilia e Tia Lucinda.Somadas as idades,trezentos e tantos anos de magníficas vivências ladeavam a mesa.Sobre a toalha de crochê ,em pratinhos de ágata fatias de marmelada acomodavam-se ao leite fresco e flutuantes bijús de farinha de milho.Como se fora um ritual, as pequenas caravelas de marmelada ancoradas num mar de leite e flocos,eram prazerosamente sorvidas pelas velhinhas selando-se o transcendente pacto de amizade estabelecido naquelas reuniões.
Das muitas recordações que guardo de vó Maria,talvez a que tenha marcado com maior intensidade era a mudança que ocorria em seu temperamento quando prenunciavam-se tempestades.Algo como se a força da natureza evocasse em suas veias um elo de ligação com seus ancestrais.Angustiada,o olhar perdia-se no infinito e a face era incapaz de disfarçar a conflitante mistura de temor e admiração a raios e trovões.Postada em silêncio entre as janelas,mostrava-se indiferente à tudo ao seu redor.Transparecia a sensação de uma estranha busca em algum lugar de seu pensamento,por rituais,danças,aldeias e turbilhões em florestas escuras, jamais vistas ou percorridas,mas araigadas intimamente ao sangue de bugre que lhe pulsava.As tempestades viajavam na força dos ventos e a mansidão das chuvas ia aos poucos desfazendo aquêle transe,conferindo-lhe à alma a leveza de campos umedecidos.
O dia de hoje trouxe-me à memória um pouco da senhora dos pomares,da ilha dos marrecos,da doceira e os muitos doces em caixotes de madeira armazenados em prateleiras rústicas,visitadas por abelhas, cobiçadas e disputadas pelos netos.No lugar onde viveu a "Nhá Teixeira",resiste ao tempo um quase centenário cedrinho,inclinado em arco sobre o que fora no passado um portão de entrada.
É o resgate único da fortaleza daquela doceira que mergulhava na energia dos temporais em busca de suas origens e retornava na placidez da bonança, serena e calma ,ao convívio de seus familiares.
Chove intensamente nêste instante.Aliás,choveu o dia todo.Enfurnado,tudo o que sente-se é agonia pela privação daquilo que se faria num dia ensolarado.
Aí,na busca de preencher o tempo, vislumbro o volume de água escorrendo pelas calhas ,como num rodopio,um retrocesso no tempo acaba arremessando-me há mais de cinquenta anos atrás:
Então...
O ciclo das águas cumpria-se em fevereiro numa tarde sufocada à um abraço cinzento de céu.
Quieto lamento de chuva sussurrava choro pelo telhado e da janela do sótão eu avistava os pingos encharcando gerânios ao redor da casa.O quintal mergulhado em poças d´agua e pelo gramado quero-queros exibindo-se em passadas esguias.
Na cozinha de chão batido,troncos de lenha abrasavam trempe e tacho onde as peras de minha infância fundiam-se lentamente num encorpado doce.Um odor adocicado de brotos de figueira,usados como aromatizante,desprendia-se daquela massa cor de âmbar,incensava o velho casarão de madeira,subia pelas escadas do sótão,varava fendas entreabertas entre telhado e vigamento por onde poeira e fumaça, de muito,já haviam gravado suas histórias.
Ao redor do tacho,de lenço e avental brancos,uma silhueta franzina e calada,repetia movimentos giratórios da pá,em busca do "ponto certo" ao doce.
Seu nome?...Maria! "Nhá Teixeira",minha avó paterna;a que trazia nas veias um sangue de bugre,como costumava afirmar com certo orgulho.
Na verdade,os traços meio carrancudos na face, ligeira austeridade no olhar e força na voz emitindo ,sem meias palavras ,tudo o que sentia,causavam como primeira impressão a quem lhe conhecia,estar literalmente diante de uma bugra.Porém,assim que entabulava-se um relacionamento mais profundo ela mostrava-se em sua autenticidade,e a aparente rigidez cedia espaço a uma criatura maleável,acolhedora e meiga ,que exercia muito bem um lado prestativo e humanitário.Era à ela que recorria-se quando da necessidade de remédios caseiros,infusões e chás,a partir de ervas cultivadas em seu proprio quintal.
Boa contadora de causos,gostava de relembrar sua chegada em Irati no ano de 1907;falava com saudades do casebre que edificara às margens de um rio (rio das Antas);de dias ensolarados,animais domésticos e passarada reinando entre o arvoredo.Da solidão das noites cerradas...Céus marejados de estrelas e a melancolia e silêncio do rancho,quando tudo o que ouvia-se era tão somente o crepitar das chamas no fogão de barro, o mugido de animais selvagens pelas nascentes,e "os brados penados" de almas incertas nos escuros caminhos da mata.Do pomar que brotara de suas mãos;das muitas frutas produzidas para os seus doces deliciosos.
A lembrança leva-me ao pontilhão improvisado deitando-se sobre um rasgo que o rio encontrara como atalho;dividia o quintal,formando uma pequena ilha com aspecto de ferradura.
Denominávamos "Ilha dos marrecos".Aves preferidas de vovó, surgiam entre as amoreiras em barulhentas fileiras rumo à correnteza. Feito celebridades nas calçadas da fama,imprimiam os diminutos leques de suas patas na lama acetinada que margeava o riacho.Imagem nítidamente preservada em minha memória.
Haviam costumeiros encontros semanais que reuniam:vovó e tres inseparáveis amigas;Nha Tuca,Nhá Percilia e Tia Lucinda.Somadas as idades,trezentos e tantos anos de magníficas vivências ladeavam a mesa.Sobre a toalha de crochê ,em pratinhos de ágata fatias de marmelada acomodavam-se ao leite fresco e flutuantes bijús de farinha de milho.Como se fora um ritual, as pequenas caravelas de marmelada ancoradas num mar de leite e flocos,eram prazerosamente sorvidas pelas velhinhas selando-se o transcendente pacto de amizade estabelecido naquelas reuniões.
Das muitas recordações que guardo de vó Maria,talvez a que tenha marcado com maior intensidade era a mudança que ocorria em seu temperamento quando prenunciavam-se tempestades.Algo como se a força da natureza evocasse em suas veias um elo de ligação com seus ancestrais.Angustiada,o olhar perdia-se no infinito e a face era incapaz de disfarçar a conflitante mistura de temor e admiração a raios e trovões.Postada em silêncio entre as janelas,mostrava-se indiferente à tudo ao seu redor.Transparecia a sensação de uma estranha busca em algum lugar de seu pensamento,por rituais,danças,aldeias e turbilhões em florestas escuras, jamais vistas ou percorridas,mas araigadas intimamente ao sangue de bugre que lhe pulsava.As tempestades viajavam na força dos ventos e a mansidão das chuvas ia aos poucos desfazendo aquêle transe,conferindo-lhe à alma a leveza de campos umedecidos.
O dia de hoje trouxe-me à memória um pouco da senhora dos pomares,da ilha dos marrecos,da doceira e os muitos doces em caixotes de madeira armazenados em prateleiras rústicas,visitadas por abelhas, cobiçadas e disputadas pelos netos.No lugar onde viveu a "Nhá Teixeira",resiste ao tempo um quase centenário cedrinho,inclinado em arco sobre o que fora no passado um portão de entrada.
É o resgate único da fortaleza daquela doceira que mergulhava na energia dos temporais em busca de suas origens e retornava na placidez da bonança, serena e calma ,ao convívio de seus familiares.