Estrelas que se apagam
Tinha uma natureza sensual e gostava de ser tratada como mulher. Casada, mãe de dois filhos, de repente entrou no rol das milhares de pessoas escolhidas pela sorte para sofrerem um acidente vascular cerebral. Isso causou a desestruturação familiar, além de sequelas físicas e mentais. O marido abandonou a doente, esqueceu os momentos ou as fases boas da vida em comum, tratou a pobre como um ente que já morreu. Jogada no asilo de velhos, apesar de ter apenas 53 anos, aos poucos desenvolveu um discurso para explicar o abandono do esposo. Diz que foi ela quem buscou a separação por não ter mais condições de “ser mulher” para o marido. Um exemplo comovente de alguém disposto a salvar a imagem de um ente querido, por mais canalha que seja.
Essa mulher, com todos os nobres atributos do seu caráter, mora na Vila Vicentina, um asilo de velhos de João Pessoa. Muito querida pelos companheiros de solidão e pelas enfermeiras, Dadinha remete a uma verdade inexorável: a gente mente para parecer melhor do que é. No dia do seu aniversário, o padre cantou os parabéns na missa da capelinha.
--- Quantos anos, Dadinha?
--- Completei 15 anos – afirmou ela, com dificuldade por causa da atrofia no lado direito do corpo.
Altamente influenciada pela chama ainda viva de uma paixão que teima em morar nos escombros de sua mente, Dadinha também mentia para salvaguardar o companheiro ingrato.
Viúvo e sem filhos, Jessy Wanderley é um caboclo ainda forte. Ele é cego e também mora na Vila Vicentina. Gosta de conversar, gesticula muito, lembra o cantor norte-americano Ray Charles. Mas o nome dele mesmo é Severino Moura dos Santos, 66 anos, pernambucano de Goiana. Jessy Wanderley é o nome artístico, do tempo em que era locutor do serviço de som Difusora de Macugê, uma pequena cidade de Pernambuco. Depois foi professor de português com 17 anos, telefonista, garçom e agricultor em Sapé, na Paraíba. Perdeu a visão em acidente na capital, João Pessoa, em 2001.
Jessy saiu cedo de casa para ganhar a vida. Diz que trabalhou em Alagoas e Rio Grande do Norte. Na Paraíba, ficou cego e veio parar na Vila Vicentina. Permitiu a publicação de sua foto e da matéria, com a condição de que eu lesse antes, para sua aprovação. Flamenguista doente, ligou o radinho para ouvir o jogo do seu time contra o Botafogo carioca.
Não vou à Vila Vicentina com dó dos velhinhos, ou para aplacar as insatisfações da vida, de nossos tédios e frustrações. Também não vou para exercitar a falsa caridade e humildade dos religiosos. Vou como repórter, com a curiosidade de conhecer retalhos de vida a partir da visão deste “eu” maravilhoso que existe dentro de cada um de nós. Todo mundo é uma estrela na vida. Cada pessoa é um artista, que só precisa de uma chance para contar sua história. Um lenitivo que a deixa com sua auto-estima elevada.
Seis horas da tarde, servem um café amargo com pão minúsculo e elástico. Os velhinhos dizem que, às nove horas, estão com fome. Não existe nutricionista. Eu acho que o ideal para pessoas imobilizadas seria um caldinho, ou papa de aveia, uma comida leve e de fácil digestão. Há algo de estranho no mundo da caridade. E esse asilo ainda é dos melhores. Soube que no AMEM a coisa é feia mesmo, o abandono, maus tratos, a dor silenciosa de quem não pode se defender e reclamar.
A lucidez e alegria de Jessy Wanderley é uma exceção. Os que estão lá foram esquecidos, de alguma forma, em algum ponto da vida. A maioria sente saudade – e muita – de quem os esqueceu. A maioria também não tem mais a perceptibilidade que Jessy ostenta.