I: Despertando a Identidade

O AUTO DA PIEDADE - Parte II

Sete Atos de Consciência

Ato I: Despertando a Identidade

Acordo num jardim, em frente as mais belas flores.

Elas parecem ser feitas de tinta e eu sinto que posso transformá-las com o poder

da minha vontade.

Um fio de consciência se forma no que sinto que há de mim e sinto que tenho um

corpo novamente, uma forma reluzente que brilha tanto quanto as flores, daí

percebo: estou morto, mas ainda vivo.

Volto a ter consciência que sou. Algo que lembra uma identidade começa novamente

a se reconstruir, enquanto cuido das flores. O processo é lento e suave, até que

flashes de luz trazem imagens, recordações que me ajudam a entender como eu fora

parar ali.

A minha consciência explode em mil lembranças. Lembro quem eu era, como era e

tudo o que fora para me tornar esse momento. Percebo as mil estórias que criei,

os enredos que participei, os outros personagens que contracenaram comigo, vejo

os rostos de todos aqueles que amei e aqueles a quem a minha luz faltou.

Vivo todas as minhas vidas no girar de um segundo, choro e rio, grito e lembro o

que me levou a loucura: desisti de ser eu.

Achei equivocadamente que precisava cada vez mais exterminar as bases do meu

ser, como se elas fossem culpadas por meus excessos, meus fracassos, meus

dissabores e ilusões. Tudo seria mais fácil, se matasse quem eu era, quem sabe,

surgiria assim, um homem novo, livre dos vícios que me levaram a depressão, a

bebida e as drogas; contudo, o meu eu era o centro que filtrava as muitas vozes

do meu inconsciente, que impedia o domínio dos meus obsessores internos; das

vozes de comando dos desejos desenfreados que ameaçavam tomar contar de mim. Ao

invés de focar no combate dos excessos, em ter mais disciplina, força de

vontade de ter uma vida mais saudável, abracei os conselhos de um antigo amigo e

quis fugir de mim mesmo e matei a minha identidade; e com ela foi-se o centro de

comando que controlava a realidade que eu dividia com os meus amados, com o

coletivo; daí, o mundo que eu conhecia se alterou diante dos meus olhos, os

símbolos mudaram de formas, as vozes que eram quase sussurradas se tornaram

gritadas e passaram a comandar os meus atos, que não tendo o filtro adequado, se

confundiam com os meus próprios pensamentos.

Tentei recomeçar do zero, reconstruir uma identidade, mas tudo o que restou

foram fragmentos de um ser, que agora era apenas um recipiente de desejos,

necessidades e expressões que lembravam muito pouco a pessoa que eu era.

Por vezes, conseguia voltar a mim, mas o eu fragilizado, logo dava lugar ao caos

multiforme dos pensamentos ensandecidos. Outras vezes, algum remédio parecia

manter a minha lógica, e o eu que eu fora, ameaçava emergir do mar obscuro e

misterioso que mergulhara; mas não havia corda que o segurasse, nem cimento que

vetasse o buraco que o puxava novamente para a escuridão da alma.

Lembro das ruas, do frio, da fome. Recordo a surra que levei da policia, uma

Bíblia sendo aberta diante dos meus olhos, e o hospício que foi a minha última

casa. Lembro que o resto da pessoa que eu me tornara, foi se desfazendo em vida

arrastada, até que senti que não era mais nada.

Passo muito mais tempo nessa lembrança que nas outras, daí, quando dou por mim,

estou gritando na clínica novamente, preso na cama, sentindo o fluido da droga

entrando em minhas veias e tudo ficando branco, tão branco que sinto que fiquei

cego.

Estou sozinho num mundo branco.

Cadê as minhas flores?

Cadê você?