Língua de cão

 

Como dormir com uivos? Como comer com uivos? Como viver com uivos?

A dona da lanchonete instigada pelos uivos constantes pede para o funcionário subir a uma escada e espiar por sobre o muro do vizinho.

Casa vazia! Os alemães foram embora? Retornam a sua terra! Levam tudo! Tudo? Não! Deixam o cão! Um pastor alemão preso a uma corrente no quintal. Faminto! Morrendo de fome! Uivando quase sem força! Comendo o próprio vômito!

Suzana muito apreensiva liga para o corpo de bombeiros. Os soldados resgatam o animal. A moça o leva para o veterinário. O animal fica internado para que possa receber todo cuidado. Na coleira a placa mostra o nome do animal. O Doutor avisa; Soraya pode não sobreviver.

Após uma semana, Soraya ainda está internada. Suzana, ao visitá-la recebe a conta do veterinário. Quase morre de susto!

Dr. Bragão divide a conta em três parcelas. O homem dá as dicas para a alimentação do pastor alemão. Tempos em que alimentar um cão de porte grande exigia cozinhar a quirera de arroz com pescoços e pés de frangos.

Por dias seguidos o animal comia, comia e comia. A sua fome era tanta; o despertar do mundo parecia fazer parte da vida do cão.

Meses, se passaram do salvamento canino, o animal esbanja saúde. Latir? Não latia, não! Soraya sabia uivar. Uivava dia e noite. Noite e dia. Desesperador!

Tarde de domingo a Tia Lietuva vem tomar o chá da tarde. A tia tinha vindo morar no Brasil logo no inicio da segunda guerra. Tropas soviéticas invadem a Lituânia e as perseguições, com vestígios de crueldade assustam a população do país que foge em busca de paz.

Lietuva conhece a história da Soraya. Sai à janela do quarto e a vê deitada no quintal. A tia arrisca falar com o cão em russo. Soraya abana o rabo, levanta, vira de lado dá um uivo prolongado e deita. Lietuva pensa um pouco. Silêncio!

_ Erhöhen Sie Ihren Hund.!

Soraya ouve a tia em alemão, assusta e levanta.

_ Aufwachen! Pula! Spät!

O cachorro rosna, pula, late, vira uma fera. Transforma-se! Assusta a todos!

A tia, então, diante do acontecido fala:

_O cão não entende português só alemão!

Tempos mais tarde, o gato de Suzana morre! A jovem chorosa ajunta o corpo imóvel e o leva para o Cemitério de Animais, situado no Bairro São João, aos cuidados de sua amiga Lilian. A moça dona do local conta com a ajuda da sua filha neste trabalho de rara beleza. Ali gatos, cães, roedores, aves..., animais de todos os tipos são enterrados com honras e orações.

Cetin, o gato defunto da Suzana recebe uma bela cerimônia fúnebre.

Lilian convida Suzana para tomar um café. Um fato surreal acontece na sua presença. A mulher explica:

_ Yoshiko, Toshiaki, Natsuko uma família japonesa precisou mudar do Brasil. O cão da família muito doente não pode acompanhá-los. Dessa maneira, Inu vira nosso hóspede.

Entre um gole de chá e outro é à hora do remédio de Inu. Teimoso não abre a boca. A filha de Lilian tenta colocar o remédio na sua boca. Nada! O cachorrinho fecha a boca e rosna.

_Mãe! Mãe vem me ajudar!

Lilian vai andando devagar. Pega o remédio o enrola em algo branco e chega bem pertinho do cão.

_ Gohan, Gohan. Yoshiko, Toshiaki, Natsuko.

Inu abana o rabo feliz. A boca continua fechada.

Lilian dispara:

_Arakatakataarakatakataarakatakataarakatakata... Gohan, Gohan. Yoshiko, Toshiaki, Natsuko.

O cachorro abre a boca e Lilian joga o remédio enrolado em um pelote de arroz. Feliz Inu o engole.

Olhando a cara de boba de Suzana, afirma:

_Para que abra a boca eu arrisco falar o nome da família, a palavra arroz em japonês e invento o arakatakata.

Suzana ri muito e percebe comovida ter vivenciado uma história semelhante. A sua Soraya e Inu, sem dúvida, não entendem o português!