Jardim da Saudade III

Sentei-me à cadeira e, sem pensar, comecei a falar, como se fosse uma explosão efusiva – e isso não é redundância – de sentimentos. Não sei o que me move, ou melhor, o que movia. Havia naquele ser algo que fazia entrar em mim mesmo; era como um espelho. Aceitei isso sem questionar - coisa rara. Seria eu racional demais? Haveria em mim falta do que chamam de sensibilidade? Não falo da forma como essa palavra é usada; mas de sua essência. Aquele homem, desconhecido, objetivamente falando, mostrou-me muito mais que um pouco de sua vida: mostrou-me a mim mesmo. É estranho como segundos a olhar uma pessoa revelem o que anos a conviver com outra não dizem. Certamente o conhecia, talvez não do que se chame agora, mas o conhecia. Tenório, disse, há uma enorme confusão em minha cabeça. Sinto como se pensasse milhões de coisas ao mesmo tempo e – que contradição! – não pensasse nenhuma. É como se minhas idéias fossem vazias de significados; como se fosse uma cópia linear do que alguns disseram. Que figura estranha sou eu? Um óbolo que converte expressões em leis? E se isso soar religioso (que é o que estou pensando agora) como converter-lhe o sentido? Entende-me? És criança, Gates, só ainda não vistes isso, disse. Digo: não que esteja a falar em tom lúdico, ou que não dê significado à vivência do meio tempo da idade. É muito além disso: É uma criança em sentido existencial; somente não dá vazão a isso. Vê. Olha teus olhos, Chrono. Há um brilho intenso e cintilante, como um vaga-lume ofegante. E o pior: você não vê isso sequer ao espelho. Se tu estivesses onde estou agora; não, direi mais: se estivesses junto àquele pássaro ali na árvore (nesse momento apontou Tenório através da janela), veria a luz expansiva - como o sol - que carrega ao olhar; mas não, está preso. E preso ao que, perguntar-me-ia você, lho digo: preso a você mesmo. Há – e sempre houve – uma conexão branda entre as coisas. Você enxerga a você, e nada além. Como pode quem conhece não se conhecer, Gates? Como pode? Há menos que tristeza no seu remorso; há um sentimento que lhe degrada a você mesmo e não vê saída senão na escritura, na fuga. Digo-lhe: li muitos livros e onde mais aprendi foi dentro de mim mesmo. Pouco a pouco me entendem vocês porque eu afeiçoei-me tão rápido a Tenório Valjean. Certa vez li uma poesia que falava algo sobre não deixar marcas, mas uma cicatriz. É exatamente isso: deixava-me, ele, uma cicatriz. Todavia não era algo doloroso – não depois de um tempo -, mas algo belo. Algo que se recria a todo instante. Algo que me faz ver como alguém que mergulha na natureza ao mergulhar em mim mesmo; algo que me faz procurar e se fazer mister ter um traço a se seguir. É isso que tenho: um traço. Nem uma linha, nem uma frase. Um mísero pequeno - e belo - traço.