UMA VIDA DE FAZ DE CONTA

Há bem pouco tempo eu ainda fiz uma constatação sobre a velha máxima de amigos, amigos, negócios à parte, que veio mais uma vez olhar na minha cara com um risinho de deboche como quem diz: por que te surpreendes? Acaso não sabes das fragilidades do ser humano e do salve-se quem puder que é a vida da maioria das pessoas no final do mês?

Como forma de evitar o sofrimento inútil tenho me exercitado com afinco no sentido de não criar expectativas baseadas nas minhas carências e vontades. Uma dívida é somente uma dívida e seu não pagamento pelo meu devedor, não se constitui numa afronta pessoal , num atentado à minha dignidade. Nada de dramatizar as finanças, nem expor num altar o deus capital.

E tal reflexão me remete a outros tipos de expectativas que a gente teima em transformar em verdades, basta que estejamos precisando de um certo apoio, calor humano, ou que estejamos de boa vontade com o mundo apenas.

Minhas antigas amigas provavelmente terão dificuldade de entender meu afastamento. Outro dia uma delas, com quem convivi na adolescência, surgiu assim do espaço imenso pra escrever emails insistentemente desejando me encontrar. Eu respondi, adiei, e finalmente ela desistiu. Não vejo como poderíamos conviver agora. Seria talvez um interesse dela não declarado e aí eu estaria sendo usada. Ou seria uma vontade escapista de reviver aquilo que não tem que ser revivido. Pra que reviver se o Agora é todo possibilidades? As lembranças a gente deixa no sótão da memória, ficam lá como referências, massa de alicerce que nos sustenta agora. E é só isso. Uma pessoa não pode sumir por trinta anos e de repente surgir como um meteorito e cair bem no meio da nossa sala. Os dois ou três anos vividos na juventude são uma gota no oceano dessas vidas que já têm tantas camadas sobrepostas de experiências independentes.

Mas nossas carências nos atraiçoam e fazem fechar acordos que não nos trazem senão perdas. Aceitar uma oferta bastante inconveniente por medo de não encontrar outra melhor, ou por não suportar a solidão, acreditar que o sorriso do balconista é uma confissão de amor, adicionar todas as garotas ou garotos bonitos na sua página da internet como se elas realmente nos amassem, eis algumas formas do chamado pensamento mágico usado como mecanismo de defesa. Entender isso é algo que venho tentando fazer para que minha vida não se constitua numa experiência de faz de conta.

Na verdade somos criaturas de uma complexidade difícil de abarcar com definições reduzidas e estreitas. E como criaturas do tempo, não permanecemos os mesmos e aquele sorriso que nos cativou um dia foi real, mas no momento em que aconteceu. Aquela paixão foi intensa e sem limites, em um determinado lapso ou brecha temporal. Temos dificuldade em lidar com tais circunstâncias e por isso muitas vezes sofremos decepções que seriam evitáveis caso entendêssemos essa dinâmica da existência. Mesmo entre irmãos, os afastamentos ocorrem e passados alguns anos, fica difícil acreditar que um dia moramos na mesma casa, tivemos os mesmos pais, irmãos, avós, cahorro, gato, enfim... Somos mutantes e isso é altamente saudável. Não somos aquelas figuras de animação paradas na tela com a paisagem passando rapidamente atrás para dar uma sensação de movimento . Somos o prórprio movimento. Por dentro, sangue nas veias, o ar entrando e saindo, infinitesimais combinações de neurônios, música inacabada, em andamento, allegros, andantes, piano, pianíssimo, explosões de estrelas nos céus cometas cintilantes em rotas doidas da paixão....

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tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 20/07/2009
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