Madame Satã por ela mesma
Na noite de 25 de fevereiro de 1900 eu nasci em Glória do Goitá, no meu Pernambuco. Nasci mal, porque minha família só não era mais pobre por falta de espaço. Dezessete irmãos passando fome numa casinha de ponta de rua, minha mãe aflita sem saber o que fazer pra saciar tantas bocas, acabei sendo trocado por uma égua. Mãe preferiu abrir mão daquele negrinho magricela e sem saúde, em troca da égua que ajudaria a carregar água do açude para as casas de família, arrumando assim qualquer coisa pra salvar os meus irmãos.
Desde então aprendi a falar alto, em função da posição precária que ocupava na sociedade. Ou eu me botava de macho, ou a vida me comia na porrada. Vivi de bicos no Recife, pedindo esmolas, às vezes carregando alguma fruta na feira, roubando uns trens pra comer. Isso até os 15 anos, quando descobri que era fresco. Michael Jackson do começo do século, eu tinha algum talento. Sabia me vestir de mulher, dançar, cantar, servir de garçom, cozinhar uma galinha de cabidela, e aprendi desde cedo a ter controle total sobre minha vida.
No cortiço onde morava fiz amizade com umas raparigas que viviam em clima de guerra com seus proxenetas. Eu me botei de segurança delas, carregando uma navalha. Neguinho meteu-se a besta, furei o bucho do cara e me mandei pra um lugar chamado Itabaiana, na Paraíba, território bom de se ganhar algum dinheiro porque lá, diziam, o cabaré se igualhava a Paris, de tanto luxo e riqueza. Viajei no trem para Itabaiana. O lugar realmente não era essas coisas, mas o cabaré fazia gosto! Cada pensão luxuosa, putas de todo tipo e origem, machos endinheirados, nem te conto!
O cabaré ficava depois da linha do trem, dividindo a cidade ao meio. De um lado, as putas e os veados, com a rapaziada da gandaia. Do outro lado, as famílias, os puritanos e os que não tinham coragem de atravessar a linha. Talvez por ter como referência a linha, o cabaré ficou conhecido como carretel. Nesse Carretel deitei, rolei e me transformei. Virei transformista, que é outro nome para travesti.
Gostei da cidadezinha, fiquei uns tempos... Não sei ler, mas ouvi falar muito que naqueles tempos os vaqueiros e tangerinos de boi desciam o sertão velho tangendo as boiadas, se encontrando tudo em Itabaiana, onde vendiam o boi e gastavam o dinheiro. Esse chamariz trouxe mais de seiscentas putas no tempo em que eu trabalhava de garçom em uma pensão. Era coisa de doido! A rua ficava entupida de gente nas noites de segunda-feira. Resultado: Itabaiana foi o centro irradiador da maior onda de sífilis e gonorreía já registrada na região.
Isso foi nos anos 20, nem me lembro direito. Depois fui moleque de recados de raparigas, xeleléu de meio de feira e cozinheiro de puteiro mal afamado. Deixei os prostíbulos de Itabaiana quando peguei carona em caminhão pau-de-arara. Fui para o Rio de Janeiro, onde o melhor emprego que consegui foi de carregador de marmita. Negro, pobre, bicha e analfabeto, não tinha muita perspectivas.
Caí na vida noturna e marginal. Gostava mesmo era de dançar, cantar e me fantasiar. Armei minha tenda no bairro da Lapa, onde os cabarés ferviam noite e dia. Fui puta de cabaré, cozinheiro de mão-cheia, leão de chácara e carnavalesco. Ah, os carnavais do Rio antigo! Em 1942, desfilei no bloco de rua Caçador de Veado, apresentando minha fantasia Madame Satã, inspirado em filme que vi de um tal Cecil B. DeMille. Fiz tanto sucesso que o nome pegou, fiquei conhecido como Madame Satã.
No meio da malandragem, conheci muita gente boa, muitos artistas, gente do rádio, também muitos espíritos de porco. Fui protetor das meretrizes, não deixava que elas fossem estupradas ou agredidas. Peguei muita briga com malandros que gostavam de bater em suas quengas. Pra isso aprendi a jogar capoeira, fui preso muitas vezes, até na Ilha Grande me levaram uma vez. Polícia que mexia com mendigo, prostitutas, travestis e negros, eu tomava as dores e o pau comia.
Assim, fiquei sendo uma espécie de referência da cultura marginal urbana do século XX. Na metade dos anos 60, o jornalista Silvan Paezzo me pediu para ditar minhas memórias, as histórias de cabaré onde passei a vida toda, desde o Recife, passando pela pequenina Itabaiana, até o sucesso no Rio de Janeiro. Contei tudo, sem boato, que não sou de esconder nada, minha vida é um livro aberto. Mas acabou virando um livro fechado também, uma autobiografia, que foi lançada no Bar Amarelinho da Cinelândia. Foi lá onde encontrei um cara de Itabaiana, vejam que coisa! Uma figura que faz cinema, chamado Vladimir de Carvalho. Contei a ele minhas aventuras em sua terra natal, confessei que meu nome de batismo é João Francisco dos Santos, mostrei minhas inúmeras cicatrizes, resultado das brigas em que me meti pela vida afora na marginalidade. Um corte profundo na coxa esquerda, foi facada de paraibano que levei na rua do Carretel. Vladimir adorou ouvir minhas deliciosas histórias.
Segurei minhas próprias vísceras, segui em frente para cumprir meu incerto destino.
Morri em 11 de abril de 1976, no Rio.