Deus, meu Deus!
assei boa parte de minha infância em uma pequena cidade do interior
de Mato Grosso chamada Aquidauana. De família Católica Apostólico-Romana, fervorosa, poderia dizer típica, daquelas que ia a missa
todos os domingo e depois ia pra pracinha central sentar nos bancos
enquanto a criançada se divertia correndo em volta da Fonte.
Eu era feliz e não sabia!
Havia, no entanto algumas exceções. Talvez a principal, o centro de
toda a situação era a figura de Deus, que se misturava com a de um
velho de longas barbas brancas, serio e carrancudo. Protegia você
das coisas feias que moravam debaixo da cama, mas também exigia seu
preço. Brincar com suas "partes intima", nem pensar! Era feio, Deus
não gosta! Aquilo colocou uma pitada de culpa na minha receita de
prazer que até hoje como uma sombra me persegue.
Culpa! Bem, depois de muito ler muitos livros de Historia,
Sociologia, Filosofia, de percorrer uma longa estrada, de muito refletir
com certa isenção de ânimos, de apanhar como um cão sem dono
e de colher o néctar que desce do céu para aqueles que bem sabem procurar
descobri que essa é na verdade uma
das marcas registradas da Cultura Judaico-Cristã.
Culpa! Afinal Jesus morreu por nossos pecados, quer você goste ou
não, acredite ou não nisso. Portanto comporte-se, agradeça e vá para
o seu lugar, óh alma torturada!
Hoje eu digo para minha querida filha adolescente que nunca se sinta
culpada, que a culpa é a técnica mais simples encontrada pelas
instituições para controlar as pessoas. (você conseguiu perceber a
sua reação frente ao parágrafo anterior?) Faca o cara se sentir
culpado, crie um problema, ofereça a "solução" e pronto! Temos ai
mais um convertido. Digo isso a ela na esperança de vaciná-la,
imunizá-la, pelo menos das chantagens emocionais mais baratas e das
técnicas de lavagem cerebral mais simples das muitas empregadas
pelas igrejas, pelos exércitos, pelos partidos políticos, pelas
famílias pelos amigos e por outros eteceteras.
Bem, voltando a "vaca fria".
Sentia-me realmente incomodado, porque mesmo no banheiro, sozinho,
com as portas fechadas, lá estava Ele, olhando, vigiando, medindo,
julgando, sentia vergonha de tirar a roupa! Afinal de contas era uma
invasão de privacidade, uma sacanagem, mas bem, o cara era Deus, não
tinha muito como argumentar, não é mesmo?
Muito tempo depois encontrei um eco e um alívio na musica Paranóia
do Raul Seixas. Recomendo, é a Arte trazendo o Humor que alivia e
reconcilia nossos conflitos internos.
Hoje em dia acho graça, mas na época deitado na cama, no escuro do
quarto, com a cabeça coberta pelo lençol, me lembro muitas vezes de
ficar sentindo pena do Caim, perseguido por um triangulo flutuante
com um olho dentro, mesmo escondido na mais profunda e escura
caverna, no mais profundo buraco, ouvia aquela voz ecoando: Culpa!
Culpa! Culpa!
Eu sei, eu sei, sempre tive uma imaginação fértil, mas afinal de contas
o cara era Deus! Infalível e tal! Então eu tinha mais que ficar na
minha e me conformar e pronto.
Foi então que o impensado aconteceu, ainda hoje eu me divirto muito
quando me lembro, ali foi o inicio da minha "perdição", da minha
vida de herege, de inconformado questionador, aquilo que levou o
padre a se negar a dar a minha primeira comunhão, recomendando a
minha desgostada família que eu precisava de um pouco mais
de "maturidade".
"Maturidade", pois sim! Aquela foi a primeira expulsão oficial (sem
contar é claro a da barriga da minha querida mamãe) da minha vida,
foi o inicio de uma loooonga tradição de expulsões, muitas delas
arquitetadas com muito cuidado nos detalhes, só pra provocar
um "efeito de cena" mais épico no grande palco da vida. Outras,
totalmente arbitrárias, muito contra a minha vontade, algumas das
quais literalmente choro muito e lamento quase que diariamente neste
meu atual exílio.
Maldito entre os próprios malditos, diria eu, mas é o Destino, essa
historia esta ainda muito longe de acabar...
Pra você ver como são as coisas, o fato se inicia com a conclusão
tirada da pureza e inocência de uma criança.
Domingão de sol, criançada se divertindo a valer na pracinha depois
da Santa Missa, tudo na mais completa Santa Paz e naturalidade,
porem uma das minhas primas, perde, aquilo é um carrinho de bebe?
Ela ta dando de mamar? De onde veio aquela criança? Como assim? Eu
não entendo???
Pobre e inocente criança, eu nem mesmo tinha a vistoela ficar
barriguda, ela nem mesmo era casada! Tinha alguma coisa errada... a
questão era saber o que? Onde?
No meu pequeno Modelo de Universo, Deus era a figura central,
infalível, puxador de todos os cordões, então onde estaria o erro?
Será que Deus teria errado?
O esquema era mais ou menos assim: Um casal, um homem e uma mulher,
se comprometiam em casar, e na Santa Igreja, frente ao
Santo Padre e toda a Comunidade faziam seus Sagrados Votos (era
lindo gente, eu sempre gostei de assistir casamentos) então Deus
vinha e PUM! Como que num raio de Luz Poderoso enviava uma criança
pra barriga da mulher, mais uma alma vinha ao mundo. Nossa, eu
ficava super contente, era um lance legal, cheio de significados, e
eu ali assistindo tudo, tomando parte, era demais! Eu sempre ficava
me esforçando, tentando enxergar o momento da concepção, pobre
tolinho...
Mas então naquele caso o que teria acontecido? Pensava eu sentadinho
no banco do outro lado da fonte, provavelmente com as mãozinhas
entre as pernas e as costas arqueadas para frente, com a testa
franzida, só olhando aquela cena da minha prima com seu bebe no
colo. Como era possível? Estalavam as sinapses no meu curioso
cérebro.
Ha não, não, não pode ser, mas só podia, provavelmente teria eu
pulado do banco da praça. Ela tinha ido a Igreja assistir a um
casamento e PUM! Deus errou o raio e foi parar na barriga dela!!!
Oh Horror!!! E agora? Pensei eu quase que como querendo esconder de
mim mesmo meus próprios pensamentos.
To perdido! Deus erra!
Será que isso pode acontecer também com os homens? Quero dizer de
ficar grávido? Eu realmente não estou preparado para isso, pensei,
já planejando não assistir a mais nenhum casamento a partir daquele
dia. Cê besta sô?!?
Mesmo as missas começaram a ter para mim um outro sentido, eu ficava
atento, olhando pro padre e a impressão subjetiva que eu tinha era
que ele estava sentindo medo, veja só! Talvez eu estivesse
espelhando meus próprios sentimentos paranóicos, difícil agora de
descobrir, mas o caso é que eu via medo. Como se ele estivesse
fazendo seu ritual, repetindo os gestos, pegando no Cálice, quase
que como sempre olhando para traz por cima dos ombros com medo de
errar, deixar cair algo sem querer.
Eu assistia tudo muito compenetrado, sem piscar, concentradíssimo
em uma das velas do altar, fazendo forca com meu pensamento para que
a vela apagasse, apagasse, apagasse, acho que o padre ia ter um
ataque! Queria ver o povo gritando com os braços levantados e
correndo pra fora da Igreja.
Ia ser uma cena!
Um pestinha, como já disseram tantas vezes as minhas tias.
As coisas foram mudando um pouco de figura quando meus pais começaram a freqüentar um centro espírita, mas isso já é uma outra historia......