O TRAÇADO
O traçado
Dia destes parei num boteco, beira de estrada, numa tentativa vã de beber uma “geladinha” ou até mesmo, em último caso, um gostoso copo de água de bilha.
O boteco do lugar era mesmo da roça. Uma espécie de bazar, com muitas mercadorias, mas em menor quantidade para homens.
Até lamparina vi numa prateleira. Fumo de rolo, doces caseiros, botinas, chapéu de palha. Poucos maços de cigarro de marcas “mata-ratos”, lingüiça esquisita, algum tipo de mantimento, tal como fubá, açúcar, sal, macarrão "fuleiro" e pouco mais.
Encostado num dos lados do boteco um banco daqueles antigões, tão lustroso, como se tivesse recebido cera e polimento recentemente. Mas, observei, nada disso: lustroso de tanto o pessoal assentar lá para um pouco de prosa e pitar fumo de rolo.
Nisso, vi um matuto, bem matuto mesmo, cuja prosa encantava-me enquanto ele enrolava o cigarrinho de palha.
Ah! Tinha querosene também! E, numa vasilha que não sei descrever bem, algo que há muitos anos eu não via em minhas andanças pelo interior, pelas roças da região: o tal sabão de cinza, pretinho, uma bola sem nenhum cheiro conhecido.
Noutra prateleira, uma dezena ou mais de coisas que a gente não vê em nenhum boteco da cidade. Alguém deveria comprar aquilo tudo e levar para algum museu.
Meu senso de bom observador paralisou quando aquele matuto que já tinha acabado de fazer seu “pito” encostou no balcão tão lustroso como o tal banco e de tábua larga, um pranchão mesmo, amarronzado, e pediu ao dono:
- “Dê cá um traçado, copo cheio.”
Fiquei surpreso, confesso. Um traçado? O que seria? O dono, com aquela calma de roceiro, de causar inveja, foi até a prateleira meio suja de pó, pegou uma garrafa e botou um pouco no copo. Pegou outra garrafa e botou outro tanto. O copo ficou cheio. Colocou-o no balcão, e o dito cujo, o do cigarrinho de palha e chapéu roto, buscou ansioso o copo e, de uma só virada, mandou a mistura prá dentro da boca. Eu continuei observando tudo, parado e meio acabrunhado por não saber até aquele momento que o tal de “traçado” era uma combinação de duas bebidas.
Minha curiosidade foi desfeita com a voz do matuto dizendo:
- “Eta traçado bão dimais! Pinga com pinga de jurubeba!”
Eu nunca tinha ouvido falar em “pinga de jurubeba”. Mas pela conversa que prosseguiu, deu-me a impressão que a tal de jurubeba bota o homem mais quente por mulher! Sei lá!...
Não encontrei o que buscava ao entrar no boteco, a tal “venda” ou “vendinha”, no linguajar caipira. Gosto muito de um papo com um roceiro. Roceiro bem roceiro, com sua linguagem própria, gostosa de ser ouvida!
Fiquei sem a “geladinha”, sem a água de bilha, embora tenham oferecido, na ausência de meu pedido, o tal traçado, a pinga pura, a pinga da cabeça etc. e tal.
Agradeci e fui embora, comendo poeira, estrada afora, com a boca seca.
Num desses dias, lembrando-me do caso, fui folhear o Aurélio em busca da palavra “traçado”, pura curiosidade.
Bendito seja o Aurélio, achei o traçado e, entre tantos significados, verbo, substantivo e adjetivo, lá estava: “aperitivo composto de conhaque com cachaça” e, num relance, exclamei alto, mesmo sem ter ninguém para ouvir, pois eu estava só:
- “Sim, senhor! O matuto, o caipira sabe ler ou conhece o significado de traçado! Ainda que seja somente essa palavra do Aurélio! Ele conhece, sim, senhor! Roceiros danados de espertos!...
Agora, falta-me descobrir a respeito da tal jurubeba. Com certeza, a qualquer hora, vou averiguar direitinho e, quem sabe, algum dia eu chegue num desses lugares e peça:
- “Traz cá um traçado, copo cheio...”
Como não sou chegado à bebida de alto teor alcoólico, forte, na certa, ao raiar do dia, vão encontrar-me deitado naquele tal banco lustroso ou de fora do boteco, assentado, cabeça baixa, dormindo e, por que não, soltando gostosos roncos...