ATO VI: A Dança

O Auto da Piedade

Sete Atos de Loucura

O corpo doido dançava enquanto os pensamentos se calavam, pois nessas horas de insanidade absoluta; alma, corpo e mente se tornam a mesma coisa e dançam.

Não há coreografia nos passos de um louco, não espere harmonia na dança, ou lógica no conjunto; se há alguma lucidez, ela balança o corpo no movimento do vento que toca uma canção que somente os insanos conseguem ouvir, por isso eu dançava sozinho no meio da praça entre o ir e porvir daquelas pessoas que só ficavam me olhando.

Elas olhavam e julgavam. Alguns gritavam:

- Vá trabalhar, louco imundo!

Outros se aproximavam, querendo dançar também, mas a convenção e o mundo girando não os deixavam ser insanos o bastante para aceitar que viver pode ser dançar; afinal, a dança é pura religião, re ligare, tornarmos a ser, conectar-se com o que há de mais sagrado: ser.

Enquanto eu loucamente dançava, uma senhora que atentamente me observava, tomou coragem e veio em minha direção, interrompeu a minha dança e jogou Cristo na minha cara, tentando converter o louco.

Ela só podia ter ficado maluca, só assim para explicar porque ela insistia em querer me levar para o seu templo, eu até iria, se ela tivesse prometido alimento, mas eu era louco, não bobo e sabia que para ir a Casa de Deus, ninguém vai em camisa-de-força.

Ela parecia não saber disso, pois insistia em repetir as palavras do livro, quando tudo o que tinha de ser dito estava dentro dela, dentro do seu coração. Achei aquilo tudo sem sentido e como ela estava, com palavras de culpa, me agredindo, gritei alguns palavrões cabeludos, daí, o amor que ela disse que sentia por todos os vagabundos virou repulsa; quase loucura, pois ela passou a gritar que eu dançava com o demônio.

Como assim? Eu poderia ser louco, mas tinha noção que dançava sozinho, o que o demônio tem a ver com isso? Foi ela que chegou, de mansinho, com o seu livro, apontando o dedo e dizendo: “você nunca será salvo por Nosso Senhor Jesus Cristo!”

Diabos, e eu lá queria ser salvo?

Eu só queria a vida.

E

Dançar a dança do Cafezinho Doado na Padaria

E agora, vinha até a polícia

Dizer

Que eu havia agredido

A Senhora que havia

Me ferido com a Bíblia

Fui apedrejado

Batido

Surrado

E crucificado.

Meu corpo doía, havia hematomas na minha alma.

Os guardas romanos não tiveram dó

Nem da minha mente

E descarregaram seu ódio

Em todo meu eu

Que virou bode expiatório

Do nó que havia

Em suas gargantas

Diante do Louco miserável.