A ARANHA

A ARANHA

Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava. Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência. Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado. Mergulhei a mão, enveredei por cantos obscuros do parquê e embaracei os dedos em teias de aranhas. Tirei a mão irritado, sem ter atingido o objetivo, mas neste gesto, bati em alguma coisa metálica. Eram eles que se instalaram a poucos centímetros de meu caminho de busca. Organizei novamente a expedição e os puxei resoluto. Quando os engatei no nariz, olhei o mundo num relance, tendo agora certeza absoluta de que ainda estava vivo. Um pesadelo resgata um mundo oculto, funesto, cheio de pequenas obsessões não ditas, doses de concupiscência não manifestada, traços de egoísmo não declarados e desejos jamais confessados. Por isso, esta aflição, este jeito de enfrentar a realidade e a fantasia, colocando-as em mundos opostos, como fazemos no dia a dia, mas que por um pequeno espaço de tempo, ao acordarmos, pendemos mais para o lado do sonho, da fantasia, que talvez seja muito mais real do que imaginamos. E ao nos darmos conta, caímos no mundo que pensamos o único, verdadeiro e concreto. Em vista disso, essa dor nas costas, este resfolegar de mãos suadas, torcendo uma na outra, como querendo limpar a sujeira do subconsciente. Agora, tento levantar-me, olhando de frente, ou de soslaio, se for sincero, o meu mundo insípido, neste quarto sujo de teias de aranha. E vejo-as passear pelo meu piso, fazendo tiro ao alvo de suas redes, prendendo-as aos pés da cama, esperando insetos incautos que se atrevem a bisbilhotar suas vidas ou mesmo integrar o mesmo espaço que tomam como direito. O meu espaço. Se pudesse, as eliminaria de minha vida, tal como as teias de aranha que ficam em minha mente nebulosa, assustada pelos direitos que me dou a ser tão lascivo, enquanto durmo, tão ousado em meus devaneios, tão despojado de qualquer sentimento de culpa. Por que agora me sinto tão culpado, examinando seus passos, seus caminhos subterrâneos, suas gosmas viscosas que grudam a qualquer estrutura, menos a suas patas. Sinto-me assim, grudado ao meu mundo real, tão longe daquele idealizado, no qual o destino me atinge com suas tramas, como aranhas gigantes, largando sobre mim as teias que me deixam alienado, preso ao chão rasteiro de minhas dúvidas e temores enquanto suas patas saltam, livres e prosseguem sem empecilhos a sua jornada. Se pudesse ao menos, me desgrudar de suas teias, suas intrigas, suas tramas tão fechadas que me prendem como mosca tonta na busca frenética do alimento. Se pudesse alçar vôos mais altos, sem preocupar-me com a queda ou a apreensão dos cuidados, sem a censura dos descaminhos, sem as verdades desqualificadas. Ah, se pudesse provar deste alimento que a aranha me induz para caçar-me, me deixa livre para decidir, sem que possa saborear a fruta que escolhi e se o faço, me lança a sua rede implacável, me prende nesta gosma infalível e me tolhe, de joelhos a bendizer a morte que vaticina. Tenho medo da aranha, mas muito mais de minhas escolhas.

(Esta crônica juntamente com a crônica "A palestra" conseguiu o 1° lugar no XXIII Concurso Internacional Literário, da Editora All Print e faz parte da coletânea "Outras Águas")

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 17/07/2009
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