Subversão do Escrito
Sabe? Eu não sei bem o que escrever. Talvez isso nem importe tanto, porque também não sei para quem escrever. Talvez um copo e vinho ajudasse. Um cigarro quem sabe? Bom, acabei de me lembrar que não fumo e que bebo apenas quando quero comemorar alguma alegria ou me embriagar de alguma tristeza. Acho que não é bem o caso. Poderia escrever sobre aquele garoto do semáforo que fortuitamente me é tão estranho, ou de prostitutas, misérias, tecnologia, política, filosofia... O fato é que não sei do que escrever, talvez nem saiba escrever, apenas junto as palavras e as deixo dizerem sobre si mesmas. Sobre elas mesmas. Assim, bem por cima. Poderia escrever de mim, mas nada seria tão patético. Sempre tive a impressão de quem escreve, escreve de sobre si mesmo, mesmo quando escreve dos outros. E para mim, nada é tão deplorável quanto querer escrever de si e não ter a coragem o suficiente para tocar na ferida, deixá-la aberta, exposta a todo tipo de infecção. Descascar uma cebola causa lágrimas. Por isso não as descasco, deixo que os outros a descasquem para mim. Adoro o sabor das cebolas, mas chorar nunca foi do meu feitio. Poderia escrever de você. Acalme-se, não daria mais do que uma linha, afinal de contas não o conheço. Também falar da vida alheia é sempre falta de educação. Por isso escrevo. Não! Dá vida alheia não. Escrevo. E é apenas isso, escrever por escrever e não dizer nada. A vida alheia não me interessa, ou me interessa, mas é que as vezes não consigo suportar nem a minha. Por isso não procuro saber sobre a vida dos outros.
Interessante. Acabou de me passar pela cabeça alguns pensamentos. Não sei se devo dividi-lo com você. Sou muito egoísta, devo admitir. Vou dividi-lo comigo então, mas deixo o papel de rascunho para que você o jogue no lixo para mim. Ah, porque o lixo? O lixo é onde ficam os restos, os dejetos, coisas indesejáveis. As pessoas não gostam de restos. Não guardam seus lixos e poucas têm consciência ecológica de reciclar seus materiais sobrosos. Existe essa palavra? So-bro-so. Eu sim me reciclo, e como me reciclo. É como se do resto de cada dia, a cada novo dia pudesse eu ter de mim algo de novo. Não sei bem falar sobre esse algo reciclado que se confunde com o novo. Aliás, novo nunca mais, apenas envelheço. Vejo a vida passar, passo com a vida e pela vida. Vida? Não. Quis dizer sobrevida, sobreviver... Sobre o viver nada posso falar. É, de sobrevivência eu entendo um pouco, mas apenas pela televisão. Sobreviver parece triste e glorioso ao mesmo tempo, por isso que, quem suporta existir parece ser tão honroso. Sobreviver causa fome e dor. E às vezes a fome não é nem de comida e a dor não é nem física. Você me entende? Acho que sim, pois de dor todos nós entendemos um pouco, são tantas: saudade, angústia. Está certo, talvez nem sejam tantas assim. Mas de uma coisa eu tenho certeza, a dor da angústia é a pior de todas, pois não se sabe por que dói só se sabe que dói. E como dói. Já que citei a angustia, vou dizer sobre a angustia. É assim: ...Pronto. Entendeu? Nada? É assim mesmo, nada.
Bem dito? Mal dito? Maldito! Não, não é você, relaxe. Nunca xingaria um leitor até mesmo porque o primeiro a ler sou sempre eu. Olha ai de novo m-eu ego-ísmo. Escrevo para os outros e eu sou o primeiro e me ler. Digo escrever para os outros porque eu não tenho necessidade de escrever nada, está tudo aqui dentro. Pois é, está aqui dentro sim.O que vem e sai. Vem de fora pra dentro e é repelido. Ou vem de dentro pra fora e simplesmente sai. Ou seria melhor dizer vai de dentro pra fora. Vem de fora pra dentro? Estou deveras confuso. Acho que me perdi um pouco, o que não deixa de ser cômico pois nunca me encontrei afinal. Divago algures. Devago. Vaaaaaaaago.
Penso em como algumas palavras tem significado completo por sis sós.Um tudo e um nada de significações. Tudo e nada me lembram de cores. Branco e preto. Branco na concepção geral dá idéia de completude, de um todo já feito e preto de nada, de um vazio abissal. A verdade é que seja justamente o contrário, o tudo é carregado, a mistura de... de tudo mesmo dando um todo, daí seria bem escuro, preto. E o branco é a ausência. Ausência de que? De alguma coisa que se juntando a tantas outras coisas, possam se tornar um tudo.E tudo é todo. Na realidade isso é uma questão de ponto de vista, o branco poderia bem representar tudo isso como também não representar nada disso. Um tudo ou nada, um todo vazio. Uma questão cultural, Talvez questão de significados, de significantes. Acho que estou me abstraindo muito e fugindo do real. O seria que nesse momento é o instante em que a ficha cai e que é justamente agora que entro mais profundamente no real. É, essa atitude pode ser improfícua demais, pode também causar nostalgia. Prefiro mesmo meu mundo de imaginação. Só que nele não encontro saci, nem cinderelas. Nesse mundo eu encontro mesmo é o pai de família, o trabalhador braçal que labuta dia-a-dia, o rústico homem do campo a roçar a terra sol a sol com a enxada retinindo em seu torrão. Turrão, já me chamaram assim por causa de meu péssimo hábito de defender minhas idéias. Defender de que, não sei. Pois de que será que uma idéia deve ser defendida? Só sei que as defendo, as trato como crianças inocentes e incapazes. As cuido como se cuida de um descendente meu. Um filho? Sou pai, sou mãe da idéia e parir uma idéia é doloroso mas engraçado .
Sabe, quero falar um pouco do que ocorre por perto de mim enquanto eu escrevo. Não descreverei o local, isso é irrelevante, mas pela descrição do que ocorre muitas vezes é possível definir um lugar. O telefone toca, um galo canta no horário errado – deve ser para estar bem afinado na hora certa ou simplesmente pra não esquecer a letra. Não atendo, deixo tocar o telefone. Escuto também o badalar de um sino ao longe. Penso em um lugar bom. Tele- transportei-me de alma para um lugar bem alto, é que do alto dá pra ver a redondeza do mundo. Em minha escrivaninha tenho duas trufas,u ma de brigadeiro e uma de chocolate. Nem como tanto chocolate porque não suporto muito a serotonina. Prefiro devorar Augusto dos Anjos, ele me lembra que sou perecível. Mas nem se pereço tenho certeza, não existe a máxima de que na natureza nada se cria tudo se transforma? Transforma, transgride, transcende oh filho do carbono! Está ficando quase metafísico...Uma bobagem deveras.
Escrevi tanto e sem dizer especificamente sobre alguma coisa que a coisa se tornou quase impossível de ser terminar. Não se tem um objetivo, e sendo assim não se termina. Mas tudo exige um ponto final e as pontuações que até agora consegui estão longe de esgotar o assunto que não é assunto. Assusto. Não se termina! Se não tem fim leva-se a nenhures. E esse será o fim das coisas? Digo das coisas que não são definidas e que não podem ser detalhadas. Metafísico, e quase religioso. Suposição de algo. Vasculhação, busca. Só não sei o que se busca e quem busca. O que busca o que? Acho que a cada momento, a cada segundo fica mais difícil de entender, mas continuarei em meu mister de não escrever, de apenas deixar as palavras rolarem. É essa a fluidez que procuramos pra vida, é essa a lei universal que rege todas as coisa animadas. Não precisamos de inteligência para entendê-las, só precisamos de sensibilidade. Mesmo que este entender seja um não entender. Mesmo que este entender desperte mais dúvidas, mais questões, O importante que o que se busca tenha a capacidade de mexer conosco, de nos colocar em movimento, mesmo que este movimento seja de estado cíclico e que nos leve ao mesmo lugar. Mas prefiro pensar que o movimento também seja uma abstração e que por isso mesmo a cada retorno, tudo esteja diferente, mesmo que exatamente igual. A alteração das coisas não precisa acontecer necessariamente em nosso estado perceptivo. É puro oxigênio. Dizem os entendidos do assunto que a primeira respiração queima até os pulmões.Romper o coto umbilical é castrar um ser permaturo, um ser-humano. O que precisamos então é poder suportar tudo, suportar o nada, Suporte! Respire, estamos quase lá agora, falta pouco. Consegue ver? É apenas escuridão? É claramente ofuscante? Aqui estamos, ai é o ponto. Ponto onde luz e escuridão se confundem, se misturam. Cautela, aonde chegamos é apenas isso. Talvez aqui, talvez ai. Mas não importa, o importante é que justamente nesse ponto é que estão as respostas para os enigmas. Curioso? Acalme-se, a verdade última não pode ser tão facilmente conseguida e pode não ser tão agradável assim. É por isso que dizem que quem chega a essa ponto não volta mais e o segredo continua guardado nisso. Todos os que aqui nesse ponto chegam pensam antes em voltar espalhar a novidade. Mas é que quando se chega aqui pode se perder. Se se confunde ao que se busca, não se reconhece mais. Sim, então é perigoso. Você pode pensar em Buda ou Jesus Cristo, mas eu continuo ainda cético. Acho mesmo que a questão é de outra ordem, podendo entretanto, ainda mentem e carregar consigo um ar de religiosidade, um aroma de fé. Quem não conhece esse estágio costuma chama-lo por vários nomes: Nirvana, paraíso... Onde se termina algo e se começa algo. Aqui pode ocorrer uma subversão da ordem e da lógica, pois o que na realidade ocorre é a tentativa de se nomear o inominável. É por isso que há tanta dificuldade de deixar claro o que se deseja, pois o desejo é obscuro, nebuloso e quando se chega ao ponto da incompreensão é que se desiste de tentar explicar, apenas se incorpora. O que posso dizer é que com isso não afirmo nada. Não digo possuir comigo uma resposta que ninguém mais possui, o que posso dizer é da subjetividade da questão, da individualidade da coisa. Torna então não palpável a ninguém, pois para se tocar a coisa precisaria do eu.
Bom, terminarei agora o escrito, tudo o que foi dito, tudo o que foi falado na realidade serviu apenas de um grande engodo para prender a sua atenção, essa distorção da verdade é muitas vezes inevitável, ou melhor dizendo, impossível é dizer toda a verdade. Fantasio, sou fantástico, fantasmático e isso é tudo mentira... Pense nisso.