UM TACHO DE BANANADA

Certamente culinária é Cultura. E o pior é que é uma cultura que se perde. Ou o que se perde é um estilo de viver?

Parece que nós brasileiros consideramos que saber cozinhar é uma cultura menor. Diante da facilidade encontrada nos supermercados, nos restaurantes, nos buffets, nas lanchonetes, minuterias, docerias, etc, pela variada oferta de produtos alimentícios disponibilizada por essas unidades de produção, cada vez menos as mulheres (e os homens, rs) se dedicam a essa requintada alquimia.

Também contribui para esse esquecimento ou menosprezo uma variada gama de aspectos sociais e culturais que se superpõem ou subjazem às motivações puramente econômicas, mercadológicas ou de vida-prática. Na verdade esse processo é bem mais complexo e o mercado de alimentação não é a causa das transformações, mas o efeito de transformações sociais ditas modernizadoras. Tradicionalmente o conhecimento da culinária era uma das aptidões da mulher, e ela por seu lado assumia competente e orgulhosamente o papel de raínha-do-lar ( por certo riram dessa citação tão extemporânea, excomungada e eivada de preconceitos, rs).

A concentração das populações nas cidades; a inserção da mulher no mercado de trabalho; a azáfama da vida moderna quando nunca se tem tempo para nada e isso também não é causa mas consequência da precariedade de tudo; o women-lib empenhando-se na valorização da mulher como pessoa, lutando para que ela alcançasse remuneração monetizada pelo seu trabalho; o machismo predominante na sociedade patriarcal; uma certa herança do ócio colonial que transferiu para as pessoas de baixa-renda a condução dos processos de transformação de ingredientes em iguarias; e o efeito-demonstração em uma sociedade que sofre do complexo de inferioridade e que copia o jeito de viver de povos considerados mais desenvolvidos, tudo isso fez com que o nível de atividade nas cozinhas das residências se reduzisse abrindo mais ainda o espaço para a industrialização do setor, seja na preparação primária dos ingredientes, seja no serviço de restaurantes e buffets, etc.

No entanto já se disse que o tempero da comida é o amor. E lembro-me do tempo em que cozinhar era um ritual familiar importante. As mulheres da famíglia tinham as suas especialidades e seus pratos carro-chefe. Tia Norma fazia uma torta de bananas famosa na família e na cidade; as pizzas de Maroquinha eram imbatíveis; como o vatapá de minha mãe ainda hoje, mesmo na Bahia, não vi outro igual; o lombinho-de-porco assado de D. Alice, a vizinha mineira era a própria delícia; o strogonoff de Suely (namorada que talvez acreditasse que se prende um poeta pela barriga, porque também existia isso) era um manjar-dos-deuses, rs, e ela vaidosa falava da páprica, do tamanho dos cubos do filé, dos ingredientes, dos tempos de fogo e dos cuidados no preparo; as macarronadas domingueiras de tia Ziter, filha de italianos, além de bonitas, eram inigualáveis nos seus sabores variados que todos atribuiam aos molhos; de D. Linda, libanesa, mãe de um amigo, aqueles pratos árabes sofisticados como alimento e pelos nomes e que eram seguidos de bolinhos embebidos em mel de abelha. E fico por aqui para não falar dos quitutes e iguarias como tortas, bolos, pudins, manjares, queijadinhas e de outras comidas quejandas, rs, que satisfaziam os paladares e os olhos.

A preparação de um almoço mais festivo era um ritual sob a batuta, rs, da dona-da-casa. O livro de receitas esmeradamente escrito e conservado, muitas vezes passados de uma para outra geração. Além da cozinheira e ajudante formava-se um mutirão onde as conversas eram infindáveis, as fofocas todas vinham à tona, as risadas antecipavam a alegria dos encontros. As comidas no fogo e aos poucos o aroma invadia todos os recantos da casa.

Uma bananada de banana-nanica (aqui na Bahia, banana d´água) na minha casa era feita em fogão à lenha, em um enorme tacho de cobre areado com areia, tijolo e limão para tirar todo o azinhavre, e eram dois sacos com cinco quilos de açucar e várias dúzias de bananas. Para fazê-lo até o ponto do vermelho, as mães, as filhas, tias, primas, amigas e quem mais comparecesse revezavam-se mexendo-o com uma enorme colher-de-pau. E ao final, os vidros eram cheios e os de fora já saiam cada qual com seu potinho. Entravam os filhos menores que ficavam por ali arrodeando para raspar o tacho, delícia de doce. rs.

E agora aqui me lembro que nunca mais vi um joão-duro, biscoito delicioso que só se comia amolecendo-o na xícara de café, daí o nome, rs; uns sequilhos recortados com uma carretilha que formava desenhos serrilhados, polvilhados com açucar cristal; as brevidades, bolinho corriqueiro que enchia a barriga de meninos, rs; um pudim de leite com orifícios internos, como queijo suiço, onde se encontrava parte de sua calda. Era tradicional na família do meu pai e a receita era uma especialidade dos seus avós que vieram do norte de Portugal; e já não ouço falar na quenga (aqui na Bahia, dona-quenga também é prostituta), uma sopa quente de fubá de milho, couve, peixe e bacalhau, comida de garimpeiros que adaptada às cozinhas mais sofisticadas era servida com polenta gelada. Enfim, coisas deliciosas que, parece, ninguém mais sabe fazer, cultura que se perdeu no tempo.

Ouvi dizer que na Europa ao convidar alguém para um jantar, pode-se perguntar quantas batatas o eu-convidado comerá (deve ser trauma da Guerra, rs), e na semana passada li sobre o recorde do glutão americano que comeu sessenta e oito cachorros-quentes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. rs.

Vendo aqui abaixo essa deliciosa sopa de caranguejo senti vontade de escrever e escrevi.