Malandro de carteirinha

Ninguém acreditava nele, mas a família reconhecia seus esforços contínuos para melhorar. Se os cadernos passavam longe e os classificados transformavam-se em inimigos, o carinho da namorada o impulsionava nos projetos pessoais, abandonados na metade do caminho.

Deu o ultimato: ou arranjava um emprego ou acabava tudo. Rodou a cidade, escolheu um banco de uma praça perto do Parque Buracão, fez da blusa travesseiro e dormiu até à noite. Cara de cansado, entrou em casa, cabeça baixa, arrependido, fracassado. Comovida, quis se desculpar, abrandar o discurso. Recortara uma propaganda de uma escola profissionalizante. Poderia escolher: encanador, pedreiro, marceneiro, eletricista, mecânico, garçom, auxiliar de cozinha, pintor.

- Vou fazer eletroeletrônica. Conserto televisão, rádio, aparelho de DVD e de CD e, mais para frente, as coisas engrenando, estudo para consertar computador. Ninguém me segura!

A namorada encheu-o de beijos. A mãe saiu da cozinha, Pepsi de 3,3 litros e pratinho de coxinhas.

O pai pagou a matrícula de setenta reais, adiantou as mensalidades do primeiro trimestre e desejou-lhe sorte. O filho apareceu no primeiro dia e nos cento e setenta e nove restantes criou domicílio temporário. Transportado na mochila, lençol embaixo de árvore de terreno baldio. Voltava para casa na hora do almoço, falando do trabalho árduo de aluno e trancando-se no quarto para concentrar-se nos estudos.

Desleixado, não se dera conta dos seis meses passados de modo que, presenteado com algumas ferramentas novas, conseguiu escapar da formatura. Tímido, não queria se exibir como muitos alunos faziam. A família apreciou o gesto de humildade. Fim de tarde, o sogro apareceu, rádio pré-histórico em punho, chiado danado.

O pai limpou a mesa da cozinha, acendeu mais uma luz, sentou-se. O sogro acomodou-se do outro lado. A mãe preferiu permanecer em pé. Técnico que se mostrava habilidoso, retirou lentamente parafusos, peças, entraves, travas, aparelhinhos e uma caixa de cordas. Livrou-se da caixa de cordas, soprou as peças, usou uma lente de aumento, arrebentou alguma coisa, fingiu amoldar um parafuso.

Por fim, fechou o aparelho e o entregou. O sogro, nada entendia de eletrônica e sentia-se um pouco envergonhado, indagou por que sobraram dezessete parafusos. Parafusos velhos. Não fariam falta assim como não mais faria falta o transformador de 110 para 220 volts.

- E o senhor não precisa pagar nada por isso. Cortesia. Meu primeiro trabalho sai de graça.

O sogro agradeceu a gentileza, engoliu o resto do café, pegou o chapéu e despediu-se, agradecendo novamente.

Ao entrar em casa, deixou o rádio em cima da mesa do computador, abriu a geladeira para pegar uma cerveja. Estrondo seguido da voz escandalosa da esposa.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 16 de julho de 2009.

VICENTÔNIO REGIS DO NASCIMENTO SILVA (www.vicentonio.blogspot.com) é Educador, Crítico Literário e Cronista. Assina a coluna “Literatura”, publicada semanalmente no Jornal de Assis (Assis – SP).