Crônica de um dia assim
Porque o dia amanheceu chuvoso, com ruídos de rotina laboriosa, uns sons de pás cavando terra, pneus sobre o asfalto, cães latindo, e o ar parado de quem nada pode fazer prá mudar isso, nada poderia mudar isso.
Porque alguns dias são assim: tão pretos, tão brancos, café com leite, pedaços de pão.
As cores fogem prá outros lugares, prá outros quadros, prá outros céus.
O meu céu às vezes chora, às vezes se abriga em meus olhos, às vezes se aninha criança em meu colo. O ar parado cria um ninho redemoinho, e folhas brancas rodopiam no centro da casa com suas janelas abertas.
E as coisas prosseguem feijão com arroz pelas calçadas de pedras portuguesas cavoucadas pelas pás da manhã. Os sinos da igreja anunciam o meio do dia, o meio a meio, nem frio nem calor, mais vida menos vida, algum desleixo do tempo, certa preguiça de colher temperos, ver as contas, a correspondência acumulada sobre a mobília calada que não range nem estala.
Alguns dias são para, simplesmente, deixar passar entre o branco e o preto, entre um sim e um não, certas lembranças que passeiam ao longe, vagos gestos que percorrem trilhas e trechos de caminhos colhendo frutos de passados distantes, e tão distantes parecem que já não são meus quando fogem pela janela aberta que me aponta o desconhecido, o futuro no berço.
Os sons, agora entardecidos, parecem os mesmos, mas não são. São outros mais quentes, mais apressados, corridos, vozes humanas que chamam. A noite logo virá virar essa página, e uma folha em branco restará amassada no canto da mesa numa sala de estar entre solidão e tédio.
Dias assim são para deixar passar, escorrer, escoar até que, até quando, até breve a noite virá, e com ela um céu que chora tingindo de azul a ponta do travesseiro.