NA BALA PERDIDA, O FIM DE UM SONHO

Troca de tiros entre policiais e traficantes numa favela do Rio de Janeiro.

Cinco e trinta da manhã.

O céu lilás por trás da cabeça do Cristo Redentor.

Promessa de sol para os turistas em Ipanema.

Um policial é atingido na testa e cai agonizante num charco de sangue, onde fica até o fim do combate, horas depois.

Um bandido descuida-se e é metralhado, cai por terra, a cabeça submersa na lama da rua.

Balas voam por todos os lados.

Acertam as placas de trânsito.

Acertam as lâmpadas dos postes.

Acertam os pára-brisas dos automóveis.

Entram pelas janelas das casas.

Ana Carolina acordou, como de costume, às cinco horas da manhã, tomou o banho, vestiu o uniforme da escola e foi para a sala, assistir o desenho animado do Tom e Jerry, enquanto aguardava a mãe trazer-lhe o desjejum, que preparava naquele exato momento, na espremida cozinha do barraco.

Ouviu os tiros.

As sirenes dos carros da Polícia

Os gritos e tropel dos bandidos.

Tudo muito claro.

Como se ocorressem ali, do outro lado da porta.

Na cozinha, a mãe teve um arrepio, um súbito tremor, largou tudo e correu para a sala, a chamar pela filha.

Viu-a tombada no solo, o sangue a brotar do seu peito infantil e a desenhar uma grande rosa vermelha no branco imaculado da camiseta.

Soltou um urro.

Como leoa que vê a cria na boca de um predador.

Como pessoa que tem um membro arrancado do corpo pela explosão de uma bomba, pela lâmina de um machado ou pela serra afiada.

Ajoelhou-se ante o corpo da filha.

Abraçou-o.

Aninhou-o em seu colo macio e quente, a exemplo de Maria, quando desceram Jesus da cruz.

Os braços da filha pendiam inertes.

Como os da boneca de pano sentadinha no sofá, a assistir impassível o desenho animado do Tom e Jerry na televisão.

Ana Carolina tinha seis anos de idade.

Cursava o primeiro ano do ensino fundamental na escolinha pública “Santos Dummont”, a quatro quarteirões da sua casa.

Gostava de carnaval e de samba.

Sonhava um dia ser a rainha de bateria da Mangueira...