Conversa de pescador

Engraçado como coisas boas acontecem quando menos se espera. Até parece que Deus tem um medidor de ânimos e, quando vê que o andor está pesado demais, manda um alento. Foi assim comigo em 86. Meu par de Internato Rural era Elisa e a cidade, Padre Paraíso, bem no cafundó do Vale do Jequitinhonha. Eu não sei se você sabe que o Internato Rural é uma cadeira do último ano da faculdade de Medicina, em que a gente passa três meses numa comunidade carente, praticando o aprendido na escola. Umas duas semanas antes da viagem, meu pai adoeceu de doença grave, foi operado e não dava mais pra eu ficar enfurnada a quase 700 quilômetros de casa. Mexe daqui, mexe dali, com muito tento, que os alojamentos perto da capital são concorridíssimos, consegui que Dona Zica, tia do Elton, me recebesse na sua casa. Foi assim que fui parar em Bom Despacho. Êta lugarzim bom!. Foi assim que peguei intimidade com a família do Elton, meu colega de turma.

Eles adoravam pescar. Eu nem sabia pegar no molinete. Mas fui aprendendo e tomando gosto. E quase toda tardinha, menos nas noites de plantão na Santa Casa, Dona Zica passava no Posto de Saúde do Campo Grande, onde eu trabalhava, pra gente ir pescar. Nem sempre o Elton ia, porque ele era piolho de bloco cirúrgico e aproveitava todo tempo livre para praticar anestesia. Nem espanta que ele ficou tão fera na profissão. Mas Dona Zica não falhava. E tinha os amigos dela e o resto da família. Tinha dia que vinha muito peixe, tinha dia que não dava nada. Eu é que nunca perdi a caminhada: aquele jeito manso de ir rodeando, rodeando, gastando prosa, me enredava tanto que eu sentia a maior falta nos fins de semana quando ia pra casa visitar o pai. De vez em quando os causos eram escabrosos demais e eu ficava na dúvida se acreditava ou não. Nessas horas Dona Zica me chamava à razão: " bom pescador aumenta, mas não inventa".

Até que um dia aconteceu comigo. Eu nem gosto de contar muito, gente pode duvidar, mas o pessoal que estava comigo está todo vivo, menos a Dona Zica, que Deus a tenha, pra confirmar a história. Eram o Elton, seu Zaqueu, Micheline, Teodoro, Dona Zica e eu. Teve uma hora, já de noitinha, que as iscas acabaram e seu Zaqueu deu na veneta de pescar com traíra. E não sei se você sabe que traíra a gente mata com facão. Pois bem na horinha que seu Zaqueu levantou o facão para matar a bicha, o Elton enfiou o nariz onde não era chamado. Esqueci de contar que ele era muito do narigudo; pra te dar uma noção, ele era chamado de Cher na escola. Aí já viu: na escuridão, lá se foi o nariz do pobre. Foi um deus-nos-acuda. Procura daqui, procura de lá, nada de achar o danado. A sorte é que o Teodoro tinha levado a latinha de rapé, que ele não largava por nada neste mundo, e a gente esparramou o pó no entorno. Não deu outra: o nariz perdido danou a espirrar e conseguimos localizar o fujão. Foi nessa hora que seu Zaqueu me deu uma bisnaga de durepóxi, que ele guardava pra quando o barco fazia água. Colei o nariz na cara do Elton e fiz um curativo meia-boca, o melhor que consegui dadas as circunstâncias. Aí resolvemos voltar, a pescaria já tinha perdido a graça mesmo. No caminho, o Elton começou a perder o fôlego e ficar branco que nem cera. Pisei fundo no acelerador e fui direto pra Santa Casa. Lá no claro é que eu entendi o problema: na correria, eu colei o nariz ao contrário, de ponta cabeça. Ainda bem que, além de narigudo, o Elton também era danado de bocudo: foi pela boca que ele foi pegando ar até o médico consertar o meu mal feito. Já pensou? Era capaz até de não me darem o diploma se ele tivesse morrido afogado...

Pois então, foi assim. Tem também o caso da traqueostomia, mas esse eu vou deixar pra uma outra hora...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Conversa de Pescador

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Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 13/07/2009
Reeditado em 05/08/2009
Código do texto: T1697022
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