Nas sombras do abandono

--Qual é o seu nome, menina?

--Marlene, doutor.

--E a sua idade?

--Talvez dezesseis, não sei direito doutor.

--Há quanto tempo você está nas ruas?

--Mais ou menos 4 anos.

--E a sua mãe?

--Morreu, doutor.

--E o seu pai?

--Está preso há alguns anos.

--Você não tem ninguém que a crie e eduque?

--Não senhor, sou eu e Deus, mas às vezes sinto que Ele não liga p'ra

mim.

--Pare de dizer bobagens, menina, isso é um sacrilégio!

--O que significa sacrilégio, doutor?

--Deixa p'ra lá, filha. Essa noite você vai dormir numa cela, amanhã,

vamos encaminhá-la a uma instituição de menores. Lá chegando,

proceda com disciplina e corretamente para que você seja bem

tratada e possa ter um futuro melhor.

--Não se preocupe doutor, não farei nada de errado, é a vida que tem

feito coisas erradas comigo. A morte vive me rondando há anos

pelas ruas, mas ainda não quis me levar. Não tenho um destino, nem

a quem procurar. Eu era pequenina quando a minha mãe morreu, não

me lembro do rosto dela. Na verdade, doutor, não compreendo por

que razão vim ao mundo. Eu me sinto sempre tão só e vazia!!

Acostumei-me a ser nada e, imagino que nada serei após a morte.

O delegado olhou-a com ternura, passou-lhe a mão sobre a cabeça,

deu-lhe um beijo afetuoso na testa e pediu ao carcereiro que a

acompanhasse até a cela, dando-lhe um cobertor e servindo-a um

copo de café com leite quente e pão. Decorridos alguns minutos,

olhou por entre as grades da cela e observou que a menina já

dormia um sono profundo. Veio-lhe à mente, os seguintes

pensamentos: "que futuro poderá ter um país que não cuida de suas

crianças? Que tipo de política é essa praticada pelos homens que se

dizem públicos? Que país é esse que se diz chamar Brasil? E ainda

ousam dizer que Deus é brasileiro! Blasfêmia, pura blasfêmia!" Após

enxugar com um lenço branco, algumas lágrimas que lhe escorriam

pelas faces, olhou ligeiramente para o retrato de sua família

sorridente e feliz sobre a sua mesa de trabalho e, agradecendo

mentalmente a Deus, vestiu o paletó preto que estava sobre o

encosto da cadeira e dirigiu-se para casa, onde o aguardavam a

esposa e os filhos amados.

Jaime Rezende Mariquito
Enviado por Jaime Rezende Mariquito em 12/07/2009
Reeditado em 21/11/2010
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