Quando a música morreu
Integrante da Antologia "Crônicas Selecionadas" - Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro
Hoje recebi a notícia que indicava a morte da música. Estou arrasado, sucumbirei, minha existência está ameaçada. Ela era minha vida, minha companheira de muitos anos, desde a primeira vez em que chegou, de verdade, em meus ouvidos.
O que vou fazer sem ela que ajudou a criar minha personalidade, afiou meu senso crítico, aguçou minha percepção e me levou para inesquecíveis viagens? Através dela cheguei à literatura e às artes de uma maneira geral. Entrei no mundo da cultura, tão valioso para a vida de um ser humano. Por seu intermédio, também, conheci tantas pessoas importantes para a minha história; quase a totalidade de meus amigos.
Certa vez, a garota com quem eu, entusiasmado, conversava me surpreendeu:
- Música nasce em um coração, passa pela inteligência, até atingir outra inteligência e chegar a outro coração.
Casei-me. Depois soube que ela leu a frase em algum lugar e nunca mais a esqueceu. Identifiquei-me totalmente, achei sensacional ter em mente a definição que expressa tão bem o significado da música; foi uma apresentação belíssima de si, como se enxergasse a música como uma forma de amor. Vivemos em maravilhosa harmonia, como uma bela canção, por muito tempo. Ela, também, já se foi. Consegui me recuperar da falta que fez, afinal não estava sozinho, tinha o conforto da música.
Nunca aprendi a tocar nenhum instrumento, mal sei o que é um “dó, ré, mi, fá”, no entanto, como no significado da frase, aprendi a captar a música do coração. Muitas vezes, nem era preciso haver uma letra para que isso acontecesse, quem estava tocando conseguia transmitir sua intenção com o som. Outras vezes, de maneira impressionante, ocorria o casamento perfeito da música com o texto. Cheguei a escrever algumas letras que foram musicadas, foi maravilhoso participar da vida da música. Agora, com sua morte, minhas escritas não passam de textos esparsos.
Como poderei me conformar em apenas ler, por exemplo, a tradução de uma parceria de Lennon e MacCartney? Impossível! Será difícil minha sobrevivência. Não imagino uma vida sem música.
Nos últimos tempos, eu estava preocupado com o que estavam fazendo com minha companheira. Tentavam, inescrupulosamente, empobrecer a música. Porém, magistralmente, ela acumulou tanta riqueza durante os anos, que eu sempre tive a certeza que ela sobreviveria a esses percalços. E, realmente, não foi essa a causa do seu falecimento.
Quem me deu a pior notícia de minha vida, que apontou a morte da música, foi um médico. Ele precisou escrever para que eu bem entendesse: “O senhor perdeu completamente a audição”.
Meu mundo caiu; a música morreu para mim. E, como dificilmente conseguirei viver sem ela, caso estas linhas sejam as últimas que escrevo, eu desejo que sejam dedicadas a Ludwig Van Beethoven e a sua surda consagração.