CACHAÇA JÁ TENHO!
Antes que o prezado leitor me tenha em conta de cachaceiro, devo esclarecer que não é de minha pessoa que estou falando (ou melhor, escrevendo). Esses dias, em frente a um supermercado, um provável indigente me abordou, de modo alegre e folgazão: amigo, se der, na saída me traga alguma coisa pra comer. Cachaça já tenho!
Sua sinceridade folgazã me fez sorrir. Estava ali um bêbado confiável. Não com as feições falsamente compungidas de quem nos pede uns trocados para matar a fome e, quando viramos as costas, se joga às bebidas ou às drogas. Lembrei-me imediatamente de um personagem de minha S.Chico: Osvaldo Gambá. Até certa época, Osvaldo vivia de pequenos trabalhos para as famílias, dava recados, buscava água na fonte da carioca. Depois entortou a vida, entornou a água; aliás, pelo jeito não colocava mais água na boca, Deus o livre. Vivia bêbado, com aquele jeito sonso e molenga dos cachaceiros de carteirinha, os olhos semicerrados, o carão sem-vergonha. Quando pedia trocados, logo ia dizendo: Não quero mentir, é pra bebida mesmo!
Desse jeito, o que poderia dizer ao nosso personagem atual? Não gosto de me sentir enganado, desconfiar que minhas moedinhas, mesmo que insignificantes, vão concorrer para manutenção do vício de alguém, aqueles que morrem de fome mas não deixam de tomar sua cachacinha. Este não, este era um pedinte honesto, não pedia para alimentar o vício, isso já estava garantido. Sua pretensa sinceridade (ou seria somente um golpe de marketing?) amoleceu mais este coração de espuma e não esqueci de lhe reservar uma bandeja de mortadela. Pensei em presunto, mas acho que ele não iria notar a diferença.
Se ele tivesse se referido ao cigarro (cigarro já tenho...), não lhe teria dado a confiança de trazer bandejinhas de alimento, pois detesto o fumo, a cachaça que ele bebe não me faz o mal que a fumaça que solta a meu redor. Folgado, continuou sentado de encontro à parede, com seus apetrechos ao lado; aí me assaltou a dúvida: será que não iria achar insuficiente minha “doação espontânea”, será que o bom humor que havia me proporcionado, nesta época em que só as más notícias nos dão o ar de sua desgraça, não mereceria compensação mais valiosa?
Mas quando abriu a sacola, vi seus olhos brilharem, a satisfação rolar em suas barbas escuras. E falou, enquanto eu me afastava: pra mim, mortadela é filé mignon!