CRÔNICA DE UM "FARMACÊUTICO" I

Cecília de Meireles escreveu um poema que diz:

“Li um dia, não sei onde,

Que em todos os namorados

Uns amam muito, e os outros

Contentam-se em ser amados.

Fico a cismar pensativa

Neste mistério encantado...

Digo pra mim: de nós dois

Quem ama e quem é amado?...”

Bom, vou transgredir um pouco de esse poema e contar uma experiência que presenciei no período em que trabalhava em farmácia.

Pois bem, nos tempos em que a automedicação não era certo nem errado, apenas não havia informações sobre isso nem médicos suficientes, em periferia, os farmacistas (balconistas de farmácia conhecidos –erroneamente- como farmacêuticos) eram os médicos locais, faziam consultas, medicavam (bom, a frase está no passado, mas ainda existem muitos por aí, quem não conhece, e até foi medicado por “farmacêutico”?). Então, certo dia estava eu exercendo esta medicina acessível e popular, afinal como diz certo provérbio popular “de médico e louco todo mundo tem um pouco”, Fui procurado por um morador local que me descreveu sua moléstia, disse ele:

- Lemão (era como me chamavam). Rapaz, toda vez que mijo sobe uma catinga! E o canal da urina dói. Eu percebi isso depois que comi uma coisinha ai, sabe...?

- Hum... Entendo. O senhor percebeu alguma mancha amarelada na cueca? – perguntei.

- Sim, tem. É coisa ruim, né? O quê que eu tomo?

- Bom... Pelo que você me falou, isso é “pinga-puis” (apelido carinhoso criado e aceito pela equipe “médica” local para GONORRÉIA). É uma doença sexualmente transmissível você tem que tomar um antibiótico e pedir para sua parceira tomar também.

- Não! Que nada, ela que se fo... Peraí... Ih rapaz, depois que eu comi essa coisinha eu “jantei” em casa. Será que minha D. Maria pegou também? Será que eu passei pra ela? Ih... Ferrô!

- Bom, nesse caso ela deve tomar também, porque provavelmente o senhor transmitiu para ela e, se apenas o senhor tratar quando vocês tiverem relação (sexual) ela transmite pro senhor outra vez...

Resumindo a história ele comprou os dois frascos do medicamento receitado pelo “doutor” com a promessa de que iria criar um discurso muito bom para que ela não desconfiasse e ingerisse o medicamento sem muitas perguntas.

Alguns dias depois ele retorna ao “consultório” (balcão) para falar sobre o sucesso do tratamento.

- Ela mandou pra dentro sem perguntar nada. Só falei que o farmacêutico disse que era para nós dois (ela e eu) tomar o remédio. – disse ele.

O que me deixou intrigado foi o fato de que o nome do medicamento é bem sugestivo (GONOL), e logo abaixo do nome está escrito em letras garrafais: “TRATAMENTO DE GONORRÉIA EM DOSE ÚNICA”.

Daí minha transgressão ao poema de Cecília:

Fico a cismar pensativa

Neste mistério encantado...

Digo pra mim: dos dois

Quem é corno e quem foi corniado?...