O Ary
Hoje em dia eu ele praticamente não nos falamos, ficando apenas no “oi, tudo bem?”, além de um ou outro brevíssimo comentário sobre futebol, algo que amamos. Mas se há alguém neste mundo que lembre pra mim, pra minha vida, mais a figura de um pai, esta pessoa se chama Ary Moreira Delgado.
Vou falar sobre o Ary. Ele é filho do meu falecido padrasto, de mesmo nome, porém com o singelo apelido de Lili. Aquele também um homem admirável, porém um tanto taciturno. O fato de ser ele um homem de poucas palavras pode ter sido o principal fator a impedir que eu me aproximasse mais dele, e, assim, pudesse aprender um pouco da montanha de conhecimento que ele tinha a oferecer. Ele era uma pessoa dotada de espírito científico. No seu barracão de ferramentas – um tipo de santuário no quintal da minha infância – tudo era consertado, desde liquidificadores a toca discos e armas. Lá ele meditava no seu silêncio de quem queria saber de tudo um pouco. Acredito que ele não foi um grande padrasto não porque não fosse um bom e grande homem, mas pelo fato de lhe faltar traquejo com as palavras, psicologia interpessoal, didática, essas coisas necessárias pra educar uma criança. Coisa que o Ary filho teve de sobra – pelo menos no tocante ao trato comigo. E o Ary nem deve saber que foi o meu grande educador.
Com o Ary eu aprendi a amar a música. Ele sempre foi muito criterioso em relação às canções – preconceituoso, eu diria. Mas isso tinha um lado positivo, pois ele fazia escolhas musicais claras dizendo “essa é boa”, ou “essa é uma merda”. Por pior e mais reacionário que possa parecer essa polarização, ela desenvolve, em muitos casos, senso crítico e estético. A pessoa se obriga a distinguir o que é bom. E, garanto, pelo menos quanto ao que ele dizia que era bom, o cara estava mesmo certo. Ele ouvia muito Roberto Carlos, músicas pop internacionais com boas melodias e arranjos impecáveis, tipo “Sayling”, de Christofer Cross, “Everybreath you take”, do Police, coisas assim. Ouvia, em contraponto, os grandes sambas de enredo das escolas de samba do Rio, gravados nos anos 70 e 80. Acho que ele me deu, certamente, boas referências. Ele gostava de ouvir alto. Ele cantava. E eu o imitava, ao que logo descobri que ele cantava muitas vezes fora do tom e do compasso. E como era bom cantar e ouvir o Ary cantar... Devo ao Ary meu amor pela música.
A música já me bastaria como herança. Mas ele me deu muito mais. Me ensinou a admirar a natureza. Contemplar e respeitar a natureza e também gozar dela, como nos inesquecíveis banhos de rio. Me ensinou a ter o gosto em fazer as coisas bem feitas. Me ensinou da importância do apuro ao escrever. Ele aparecia, de vez em quando, com novas palavras. E como era interessante a confusão criada pelas palavras “difíceis” do Ary. Me ensinou a tratar os amigos com cordialidade e respeito. Me ensinou até a perdoar alguns amigos sacanas. À sua maneira, Ary era (é) um cavalheiro. Ary foi (é) admirado por muitas pessoas. Algumas não. Mas aí estão aquelas que não se esforçam para compreender o outro: coisa que o Ary sempre fez muito bem. Ele me ensinou a gostar do Zico e do Flamengo. Isso numa época em que Zico e Flamengo podiam me dar muita alegria, e assim o fizeram.
Meu senso de humor vem, com certeza, do Ary. O humor do Ary não é destrutivo ou sarcástico. É feito de piadas super-curtas, com trocadilhos, coisa muito fina e delicada. É um tipo de humor para poucos. Humor sem palavrão. Só quem conhece sabe do que estou falando. Me sinto bem quando alguém me julga bem humorado. E meu humor é muito, muito “aryano”. O Ary só não me ensinou aquilo que ele não sabia. E só não me ensinou mais porque minha alma rebelde e curiosa me obrigou a aprender uma infinidade de coisas sozinho, e, claro, a contrariar coisas sempre que possível e cabível. E eu não poderia deixar de contrariá-lo.
O Ary não é meu herói. Eu não tenho heróis. Ele é, sim, meu pai. E quero que ele saiba disso. Ele é o meu verdadeiro pai. Contudo, somos diferentes. Nossas vidas são diferentes. Nossas visões de mundo são diferentes. Hoje não tenho tantas certezas como ele sempre demonstrou ter. Acho as certezas muito inocentes e perigosas para as nossas vidas e a para a vida dos alheios. Eu e Ary não gostamos mais das mesmas coisas – apenas umas poucas restam. Não fazemos as mesmas coisas. O estilo de vida metódico do Ary não combina com o meu e isso, entre outras coisas, me afasta dele. Não porque eu não o ame, mas pelo fato de que a enorme diferença de estilo entre nós pode vir a ser motivo gerador de constrangedoras conversas desafinadas. E disso não gosto. Isso não faria jus à grande escola Ary do passado.
Mas há algo importante a ser dito. Eu e Ary somos homens extremamente tímidos e orgulhosos. Uma gigantesca timidez, vinda, provavelmente, de um perfeccionismo frustrado. E um orgulho que faz com que não gostemos, nem eu nem ele, de sermos contrariados em nossas opiniões. Aprendi também a ser muito orgulhoso com o Ary. Aí está algo que preciso desaprender um pouco.
E claro que já reclamei de algumas atitudes do Ary. Fui, em certas ocasiões, quase um crítico feroz – mas poucas vezes fui homem pra dizer na cara dele o que eu pensava. Tive muitas queixas dele. Muitas. Como um filho tem de um pai. Como ele tinha de seu pai. Mas nada que o torne desprezível pra mim – de forma alguma. Não me sinto bem tentando ser indiferente ao Ary. Ignoro-o às vezes, como uma espécie de necessidade pessoal mal resolvida psicologicamente, como uma atitude infantil quase involuntária. Mas o tamanho de minha gratidão por ele não cabe em poucas palavras como estas neste pequeno texto.
O passado não volta. As cicatrizes nos modificam mesmo. Nossa relação nunca será como antes, ainda que mal ele não tenha me feito, e isso, essa mudança de comportamento, é mais do que natural. As pessoas mudam e as vidas são assim marcadas, influenciando o cotidiano de forma inexorável. Mas, ainda assim, pretendo um dia ter boas conversas com o Ary. Quem sabe tomarmos um vinho, ou até passearmos juntos de bicicleta como tantas vezes fizemos. Eu quero que ele saiba que o considero um grande homem. E que todos saibam disso. Não. Ele é mais que um grande homem. Ele é um brasileiro genial, de uma genialidade que poucos tiveram (têm) o privilégio de conhecer.