Ele Queria!
Ele queria poder guardar todas as suas preocupações em si, subtrair os problemas, dividir as angústias, somar as paixões, multiplicar... Ele queria poder entrelaçar suas pernas nas dela e fazer eternas aquelas noites já sem tanto brilho. Ele queria poder fazer ela contar ao pé do ouvido todos os segredos ainda escondidos. Ele queria fazer-se seu bode expiatório e carregar seus pecados até que o escarlate fosse branco e os cowboys voltassem da peleja. Ele queria resguardar tudo o que fosse bom numa manhã de páscoa. Queria que os brinquedos da menina perdida não fossem somente brinquedos, que as estórias não fossem somente estórias, que as fantasias não fossem somente fantasias, que os sonhos não fossem somente sonhos. Desejava poder guardar no peito as dores ressuscitadas de tempos longínquos, as saudades acabrunhadas no canto daqueles olhos oblíquos e dissimulados. Queria saber a real dimensão do poder do superman e, quiçá, equacionar a capacidade intelectual de todos aqueles tolos televisivos que choravam no enterro do santo rei. Queria poder escutar todas as músicas que falassem nela. Queria poder ler todos os livros que lembrassem seu rosto. Queria fazer dos cabelos brancos motivos de respeito. Queria tomar as torpezas mundanas, engolir as vicissitudes carnais. Medir o canal do panamá com seus próprios pés e depois sair correndo pra dizer a ela seu mais novo e incrível feito, daí, então, seria mais poderoso que o superman e, talvez, menos inteligente que todos os tolos televisivos que choravam a morte do santo rei. Queria poder correr o mundo e contar as novidades daqueles tempos. Ele queria saber de cor todas as estórias que mamãe contava e recontá-las em sussurros, ou melhor, em suspiros, durante as difíceis noites de chuva. Ele queria mais...
Ele queria saber por que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, e por que todas as lógicas se tornaram tão inúteis e sarcásticas depois de tudo aquilo. Queria poder acabar com todas as lógicas, ou melhor, queria fazer restar só uma, aquela que não nos faz pensar muito. Queria poder derrubar todas as filosofias, ir de encontro a todas as ideologias e depois voltar correndo de madrugada pra contar o quanto esperto era. Queria decifrar o enigma das rosas que cantavam no jardim. Queria poder saber do que elas falavam enquanto sonhava com as noites eternas. Queira saber o nome, a forma, o cheiro e os sonhos de todas as rosas, pra depois, como menino bobo, contar suas experiências entusiasmadas nas tardes de outono. Quisera ele somente os espinhos...
Ele queria poder carregá-la nos braços numa manhã de verão, fazer com que o sol fosse testemunha de uma semana que seria eterna na cabeça de uns. Queria fazer seu corpo rodopiar na pista enquanto escutavam a música. Queria poder abraçá-la nas noites frias, dizer que estava tudo bem, salvaguarda-lhe do perigo, recostar a cabeça dela a seu ombro e, enquanto ela fechava os olhos pra dormir, cantar aos seus ouvidos as palavras de conforto. Ele só queria deitar-se ao seu lado e dizer que tudo ia dar certo. Ele queria poder acordar, olhar dentro dos olhos oblíquos, saborear seu sorriso e dizer “bonjour, ma belle”. Ele queria levá-la pra andar na praia a noite e mostrar-lhe o que faziam os moleques quando caía o sol. Queria ter a cura de todas as doenças dentro do bolso. Queria saber o que se passava por sua mente truncada. Ou não. Preferia realmente não tomar conhecimento sobre certos pensamentos. Mas queria saber se realmente aquela cabeça já calva, o rosto castigado e o corpo não tão atraente seriam suficientes para satisfazer suas mais íntimas regalias não reveladas. Queria passar um dia escutando Marisa, outro Cartola, outro Chico, outro Nana. Queria saber de onde vinha a voz do Robert Plant, a categoria do Ritchie Blackmore e, enfim, dizer a ela que era um “rockstar”. Queria morar dois anos na França. Dois anos na Inglaterra. Dois anos no Havaí. Dois anos no Caribe. Queria então voltar e dizer todos aqueles segredos sussurrados em diferentes idiomas, como se isso os fizessem mais especiais.
Ele queria poder realizar todos os seus desejos, mas então ela não teria mais desejos. Ele queria salvar-lhes de todos os males, mas então ela não teria mais por que lutar. Ele queria guardar-lhe em si, à sete chaves, com tanto esmero que, nem de perto, a cinderela seria mais princesa, Rapunzel mais amada e Branca de Neve mais cortejada. Queria, num beijo, fazer-lhe esquecer que ali havia um chão e, acima, estrelas. Queria poder fazer-lhe ler todos aqueles bilhetes idiotas escritos à meia noite.
Ele queria poder fazer tudo ser do jeito que desejava. Queria não se preocupar a noite. Fato é que já era noite.