O CERRADO, FAZENDEIROS E ONÇAS PINTADAS

O CERRADO, FAZENDEIROS E ONÇAS PINTADAS

Foi onde nasci, no Triângulo Mineiro.

A arte é feita do lugar onde nascemos, de nossa língua materna. O cerrado é minha matéria prima, a fonte na qual bebo. Fecho os olhos e lembro de nós no “mato”, como chamávamos o cerrado. Arbustos retorcidos, rios de fluxo rápido, ribeirões macios e brilhantes, poços ribeirinhos, onde se podia nadar. As matas. Emas correndo soltas, seriemas e nuvens barulhentas de periquitos, maritacas, tucanos. Tatu quando havia sorte, porque tatus são medrosos do humano. Aliás todos os bichos. Tamanduá em toda minha vida vi uns dois.

Do cerrado ficou para mim os amplos horizontes, o silêncio quebrado por gritos de pássaros e rajadas de vento. Bicho e vento para mim são feitos de silêncio, como o ruído do mar, que conheci bem mais tarde.

Nunca tive medo de onça pintada, lobo guará, cobra. De calango muito menos. Posso ainda ficar horas olhando para um deles parado, quentando sol.

Vivi no cerrado nas décadas de 40 e 50. Do cerrado minha sensação de liberdade. Talvez ainda exista em mim a ilusão da liberdade, fermentada pela imensidão do olhar, que no cerrado nunca chegava ao fim, este resvalava no horizonte e seguia além. Havia sim o fim do dia, quando a noite caía sobre nós. E ninguém se machucava. Era hora de ouvir as histórias dos peões, do meu avô Moysés, do Mario, o administrador da fazenda, quando as casas mal assombradas, o poço preferido do Velho do Rio, a pedra onde as iaras quentavam sol eram mapeados.

Pesquisas na internete mostram o cerrado como a segunda maior formação vegetal brasileira, habitat riquíssimo em sua diversidade de fauna, flora, minerais, água. O cerrado originalmente estendia-se por uma área de 2 milhões de Km², abrangendo dez estados do Brasil Central. (http://www.portalbrasil.eti.br/cerrado.htm) Nas décadas de 40 e 50 havia no Brasil muito maior extensão de cerrado, assim como de outros bio- sistemas.

Quando volto ao Triângulo não vejo mais cerrado, a não ser poucas reservas, quase todas em fazendas ou condomínios de luxo particulares. Imagino que haja reservas maiores, do governo, mas preciso pesquisar para afirmar.

Outro dia encontrando pessoas ouvi de um pessoal do Triângulo, que fazendeiros andam revoltados com as onças-pintadas. Elas comem bezerros em profusão. Perguntei:

_ “Como assim? Onças no meu tempo nunca apareciam. Se comiam algum bezerro era completamente esporádico, os pastos ficavam distantes das matas”.

No meu entender o que ocorre, as fazendas invadiram as matas, enormemente desbastadas. As reservas ecológicas obedecem ao chamado “limite legal”. Os fazendeiros dizem: _ “Não posso derrubar toda a mata, mas o que puder vou desmatar para plantar eucalipto, ou criar gado, ou plantar soja...”

O lucro.

Fora o limite legal há desmatamento, e este não é o que o bio-sistema necessita para se preservar, pelo contrário está espremido. Há uma super população de animais nas matas do cerrado. Com o desmatamento se refugiam nas áreas que sobram, super povoando as pequenas faixas de mata que lhes sobraram. O desequilibro ecológico não foi criado pelos animais, mas por nós humanos.

Por que onças-pintadas comem bezerros? Os fazendeiros dizem que é mais fácil comer bezerro desvalido, dá menos trabalho. Seriam as onças preguiçosas? Não acredito em onça preguiçosa, em onça acuada sim. As matas não invadiram as fazendas, foram invadidas. E os animais das matas? Não reconhecem mais seu território no habitat estraçalhado? Onça é parte da natureza. Nós, bichos humanos é que somos dissociados.