EU MATEI MICHAEL JACKSON

Quando eu era criança, e isso faz muito tempo atrás, eu brincava na rua com meus amigos, jogava pião, bolinha de gude, aquela que a gente fazia a caçapa com o calcanhar.

Esqueci de dizer que eu morava no interior e a rua da minha casa era de terra.

A que maravilha a rua da minha casa: no calor, a rua seca, uma leve camada de poeira cobrindo as marcas de pneu de caminhão e dos poucos carros que passavam por ela, poucos pois era uma rua que começava e terminava na mesma outra rua. A gente corria, jogava bola, jogava queimada, e de propósito, jogava poeira nos amigos. Final de tarde todos para suas casas e o fatídico banho para tirar a poeira e poder jantar limpinho.

Quando chovia, ai sim era gostoso: enquanto chovia a gente fazia barquinhos de papel, até mesmo com uma pequena capota bilateral para não entrar água e soltávamos nas “corredeiras” formadas na lateral da rua, corredeiras que as vezes atravessavam a rua mudando de lado e fazendo com que nossos barcos corressem mais nas travessias, encalhassem nos rodamoinhos ou em alguma passagem mais estreita.

Quando parava de chover, era um tal de ligar as varias poças para ver a água escoando e aproveitar para uma ou outra batalha de barro. Depois, o tradicional banho da tarde. Brincávamos assim nas férias ou depois dos estudos: todos nós tínhamos nossas lições para fazer e quando acabávamos nos encontrávamos na rua para brincar: se algum amigo tivesse alguma dificuldade nos estudos, corríamos para ajudá-lo para que pudéssemos brincar juntos. A gente estudava no mesmo Grupo Escolar, estadual ou municipal eu não me lembro, mas éramos todos iguais na escola, na rua e nas brincadeiras.

Um era preto, o outro branco feito neve, o outro mulato, o outro rosado, cada amigo de uma cor diferente e dentro dessas diferenças éramos todos iguais.

Isso tudo quando eu era criança e faz muito tempo atrás.

Meus amigos, o Tição, o Alemão, o Pelé, o Foguinho, o Vesgo, o Garoto Legal, o Escovinha, o Queixinho, o Dentuço, o Bola Sete, o Barrica, e tantos outros amigos de infância que nunca mais vi desde que meus pais se mudaram para São Paulo, cidade grande, onde completei meus estudos, me casei, tive filhos.....

Fiz novos amigos, o Rodrigues, o Zé, o Junior, o Tonico, o Chico, o Luiz, o Bilé, o Quinzinho, o André, o Linerte; um monte de novos amigos e os conhecia todos por seus nomes ou apelidos.

Como falei: tive filhos e conheci alguns amigos de meu filho: o João Paulo, o Luis Augusto, o Marco Antonio, o André Luiz, o Paulo André, o João Luiz, o Chico Mendes, o Thomás, o Charles, o Johnny, o Gus, o Pedro Henrique, o João Junior, e tantos outros nomes que ficaria difícil escreve-los em tão pouco espaço de papel.

Percebi uma diferença fundamental, entre a minha infância e a deles: eles nunca brincaram na rua, nunca jogaram pião, nunca soltaram pipa sem cerol, nunca tomaram chuva ou brincaram no barro da rua, nunca se chamaram pelos apelidos que tinham, isso era inevitável, a não ser para ofender de verdade. E quando brigavam, se os pais não tomassem as dores e satisfações, viria com certeza, algum dia, a vingança.

Eu não vou falar a mentira de que nunca brigávamos quando criança, a gente brigava sim e saía sangue as vezes, mas no dia seguinte, a turma nos obrigava a fazer as pazes e continuar as brincadeiras. Tínhamos de ser uma turma sempre completa.

Hoje, talvez um pouco antes de hoje, os amigos são para arruaças, shopping e outras quimeras. Se algum não puder, se resolver ficar estudando um pouco mais que os outros, até logo, passe bem, fomos!

A filosofia dominante é mais simples que no meu tempo: “ema, ema, cada um com seu problema!”

Se um não pode, azar dele, eu posso!

Mas mesmo assim, ainda existem amizades que perduram por longos períodos.

O que me chateia é que alguns amigos deles, dos meus filhos, alguns amigos, poucos é verdade, muito poucos, são de cor.

O André Luiz, o Chico Mendes, o Thomas são exemplos vivos de uma nova geração de cor.

Ai de quem os chamar de Tição, Pelé, Bola Sete, com certeza quem chama-los assim sofrerá um processo por discriminação racial e os pais pagarão caro por isso, por essa brincadeira que no meu tempo não discriminava ninguém, apenas aproximava os amigos.

Mas os tempos foram mudando e eu não percebi que mudava junto com ele: comecei a selecionar meus novos amigos pelo que eles aparentavam, pelos “brinquedos” caros e novíssimos lançamentos que ostentavam. E eu também comecei a ostentar!

Comecei a exigir que meus amigos de cor ficassem mais claros para poder compartilhar com eles minha mesa, meu banheiro no clube e ate mesmo o meu restaurante preferido.

Compartilhei com a mídia, que descobriu um novo filão de ouro, que a discriminação era um grave problema no meu país, que os brancos não aceitavam os negros e os negros eram uma minoria achatada.

Inventaram a escova progressiva, com um monte de formol de conservar cadáver e inventaram a chapinha, se não tiver a chapinha, serve ferro de passar mesmo, sem ser a vapor.

Deixei a mídia me vender sabonete para pele escura e shampoo para cabelo crespo, como se eu não tivesse uns amigos brancos de cabelo ruim e como se os produtos químicos do sabonete reconhecessem a cor da pele de quem usa.

Fui deixando que todo esse ranço racista fosse entrando na minha vida e fui pouco a pouco esquecendo do Tição, do Pelé, do Bola Preta.

Comecei a ver a transformação do meu ídolo, aquele negrinho de cinco anos que dançava e cantava como um anjo.

Ficava rindo cada vez que ele fazia uma plástica para se parecer com alguém que ele admirava, ria cada vez que ele se deformava com plásticas no nariz, para poder seguir um padrão branco.

E morri de rir quando o vi branco: até que enfim ele havia conseguido ficar branco!

Quem ele pensava que era, ficando branco com jeito de negro!

Nunca deixaria de ser negro!

E eu, com meus amigos, riamos muito das historias do nosso ídolo.

Das varias plásticas, do cabelo esticado, do nariz empinado.

E a cada dia, esperando por uma nova surpresa, uma nova feição, como se fosse já uma obrigação do meu ídolo, se parecer com qualquer coisa, menos com ele, para simplesmente me agradar, cobrando dele uma postura, a mais branca possível, no meu vídeo.

De repente, me dei conta que o ser humano que morrera, morrera por minha causa!

Eu não prestei atenção nos sinais que ele dava de solidão, de amargura, de sofrimento, pois a única coisa que ele queria era brincar.

O grande parque de diversões que ele montou para si, eu também o destruí com injurias, com calunias, pois não poderia admitir que alguém daquela cor, tivesse alcançado tanto quanto Michael alcançou.

Eu havia ficado cego, pela ganância, pela mídia, pelas amizades erradas.

Eu, de certa forma, matei Michael Jackson.