Por quem Chora Joana

Por quem chora Joana

Acocorada no batente que dava para o alpendre nos fundos da casa, encontramos Joana. Estava de cabeça baixa, mãos entre as pernas. Vestia um vestido de chita que perdera a padronagem entre a sujeira nauseante. As lágrimas desciam-lhe pela face também suja, encardida. Passava as mãos pelos olhos cansados, pelos braços pelancudos, mostrando aquelas unhas grandes e empretecidas pela sujidade. Tudo nela dava mostras de que a vida acabara.

A razão de tudo isso fora a morte de seu companheiro, há dez dias. Como Joana entendia a morte, se não entendia a vida? No abismo em que se afundou, nada mais lhe era importante. Não comia, nem bebia. O fogão a lenha estava coberto de cinzas antigas. Não se viam sinais de vida naquela casa que, desde o acontecimento, não fora arrumada. A poeira acumulava dia-a-dia e a sensação que se tinha era de desprezo à vida.

Do pequeno alpendre, viam-se as galinhas acompanhadas dos seus pintinhos, ciscando pelo quintal. As poucas cabeças de gado bovino estavam soltas. Teria ela lhes dado a ração diária? A água para beber teria chegado ao cocho? Ninguém sabia. Naquela imersão no vazio, Joana não queria nada. Era só tristeza e solidão. A vida era sentida apenas por alguns movimentos e respostas monossilábicas que nos davam. Seu olhar úmido e embaciado pelo sofrimento, fixava-se, não em nós, mas no vazio, porque vazios estavam sua alma, seu coração e seu espírito. Corpo e mente se completavam na obscuridade de um ser sem fé, sem Deus.

A alma que se fora há dias, não morrera. Vivia a sua espiritualidade, à procura da paz celestial. O corpo que ela deixara, já se desfazia, misturado à terra. Como queria Joana desprender-se de tudo, sepultar seu corpo, se ainda vivia? Como poderia ela entregar-se à morte, se em seu peito batia um coração, em sua cabeça pulsava um cérebro que se debatia em busca das lembranças mais caras? Viver assim era, de fato, antecipar a morte.

Encontrava-se Joana em estado de torpor, não pensava em Deus. Parece que sua fé, se algum dia tivera, murchara.

Não atinava sobre a vida que se foi. Não refletia sobre o mistério da vida e da morte que nos envolve. Não entendia que aquela vida pela qual chorava, venceu a morte. Venceu a morte das dores, dos sofrimentos que viriam, mortificando o corpo já débil e uma mente já envelhecida e cansada, que ansiava pelo descanso.

Joana agora só queria sofrer. Era uma mortificação do corpo e da mente como retribuição à companhia de tantos anos... Mas Joana queria morrer? Não. Ninguém quer morrer. Ter medo da morte, viver em expectativa angustiante do fim da vida são pensamentos que afligem a alma humana. E afligia também Joana.

Como, então, alguém poderia entregar-se assim ao desespero, antecipando, inconscientemente, uma ação que, por certo, viria acontecer no seu tempo?

Viver. Morrer. Tão bom viver! Tão bonito morrer! É bonito morrer, quando encontramos boniteza na vida. Quando todas as nossas ações se voltaram para o bem, num exercício de comunhão com os irmãos. Bonito morrer, porque morrer não deve ser como Joana pensa... Bonito morrer quando se tem consciência de que uma vida ressurge, após o cansaço da vida que se vai. É como disse Rubem Alves: “A vida é um poema enorme, uma explosão de gestos e de sentidos espalhados pelo espaço. Mas como tudo é humano, a vida é também cansaço que anseia pelo sono”.

Ter a certeza de que depois da labuta, o corpo descansará, é uma felicidade. Joana não compreendia que seu companheiro precisava descansar. Ansiava pelo sono, para despertar num lugar onde as luzes não possuem o brilho metálico das engrenagens humanas que podem apagar, mas o brilho da luz que vem da proteção divina. Ter a certeza de que outra vida existe, real e imutável, dá-nos um conforto extasiante diante do abismo da morte. Joana, entretanto, naqueles dias, era alimentada tão somente pela amarga desilusão de uma perda. Era assim que ela entendia a morte de um ente querido; é assim que todos nós entendemos, porque não pensamos no ser que partiu.

Como Joana, ficamos com a consciência embotada pela dor e pela saudade, o que nos impede de raciocinar. Mas recobramos a nossa visão, se tivemos uma educação religiosa consistente. Essa mulher, no entanto, não passara por esse processo. Sua mente estava fechada pela ignorância, não se abria a uma fagulha de luz. Seu interior estava minado pela dor da morte que ela não aceitava.

A consciência vigorosa e animada pelo temor de Deus não achara guarida no seu espírito fraco e abatido, porque lhe faltara uma formação espiritual, a vivência da fé em Deus.

O ser humano, ainda que não seja letrado, tem que ser espiritualmente educado para dominar, em toda a sua profundidade, as forças negativas da descrença e das ações dissolventes que definham o corpo, obnubilam a inteligência, já que todo homem tem natureza tridimensional, formada de corpo, espírito e alma.

Entender a morte como um fato natural da vida, ainda é muito difícil, especialmente para quem não entendeu a própria existência e não procurou elucidar esse mistério: Quem sou? De onde vim? Para onde vou?

Como disse Santo Agostinho “O homem foi criado por Deus e a sua alma não encontrará descanso enquanto não voltar para Deus”.

Joana teve o seu momento de dor, porque chegara o momento de Deus.