BONÉ ANALFABETO (“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento/ Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.” )

Era uma manhã ensolarada de fevereiro quando cruzei os portões da Escola Municipal Monteiro Lobato pela primeira vez. O ar estava carregado com o cheiro de giz e expectativas, típico do primeiro dia de aula. Enquanto caminhava pelos corredores em direção à sala dos professores, minha mente vagava entre memórias de outras escolas e a curiosidade sobre o que me aguardava neste novo capítulo.

Ao entrar na sala, fui recebido por um burburinho animado. Meus novos colegas estavam reunidos em torno da diretora, Dona Marta, uma senhora de óculos de tartaruga e ar severo. Aproximei-me silenciosamente, captando fragmentos da conversa sobre as normas para o bom andamento dos trabalhos daquele ano.

"...e lembrem-se, o uso de bonés está terminantemente proibido nas dependências da escola", declarou Dona Marta, seu tom não deixando margem para discussão.

Senti um nó se formar em minha garganta. Aquela regra, aparentemente inofensiva, trouxe à tona uma lembrança que eu havia guardado no fundo de minha mente. A história de Luzito, um aluno do sexto ano da minha última escola, começou a se desenrolar diante de meus olhos como um filme.

Luzito era um garoto franzino, de olhos vivos e sorriso fácil. Seu boné inseparável, estampado com o emblema de seu time do coração, era como uma extensão de seu ser. No terceiro dia de aula, ele foi mandado de volta para casa com uma advertência: só poderia retornar acompanhado do pai.

No dia seguinte, presenciei uma cena que mudaria para sempre minha perspectiva sobre regras escolares. O pai de Luzito, Sr. Ignácio, um homem de mãos calejadas e olhar cansado, entrou na sala da diretora. Sua voz, rouca e emocionada, ecoou pelos corredores enquanto ele contava sua própria história.

"Eu também fui expulso da escola por causa de um boné", disse ele, com os olhos marejados. "Disseram que eu poderia esconder drogas nele, que eu usava para cochilar na aula, que provocava violência. Mas sabe o que esse boné realmente escondia? Minha insegurança, minhas espinhas, meu medo de não ser aceito."

Sr. Ignácio continuou, explicando como aquela experiência o afastou dos estudos: "Estudei só até a quinta série! Depois que acabou minha adolescência, deixei de usar aquele boné que tampava as espinhas horrorosas de minha testa, porém não pude mais estudar, tive que trabalhar para sustentar minha família."

As palavras do Sr. Ignácio reverberaram em minha mente enquanto eu observava meus novos colegas assentirem em concordância com a proibição dos bonés. Senti um conflito interno crescer. Deveria eu compartilhar a história de Luzito? Questionar uma regra que parecia tão estabelecida?

O sinal tocou, anunciando o início das aulas. Engoli em seco, optando pelo silêncio naquele momento. Mas enquanto me dirigia à minha primeira turma, fiz uma promessa silenciosa a mim mesmo: encontraria uma maneira de abordar esse assunto, de fazer a diferença, mesmo que fosse um aluno de cada vez.

Naquela noite, deitado em minha cama, refleti sobre o poder que nós, educadores, temos nas mãos. Não é apenas sobre ensinar conteúdos, mas sobre moldar vidas, quebrar ciclos, e às vezes, questionar regras que podem inadvertidamente marginalizar nossos alunos.

A história do boné de Luzito e do Sr. Ignácio me ensinou que por trás de cada regra, por mais bem-intencionada que seja, pode haver uma história não contada, uma ferida não cicatrizada. Como educadores, nossa missão vai além dos livros didáticos. Estamos aqui para construir pontes, não muros.

Hoje, reflito sobre aquele momento e sobre o quanto pequenas regras podem ter grandes impactos nas vidas dos alunos. Luzito e seu pai me ensinaram uma lição valiosa: a importância de questionar e, às vezes, desafiar normas que podem parecer arbitrárias. Afinal, a educação deve ser um caminho de crescimento e compreensão, não de barreiras e limitações.

E assim, com o coração cheio de determinação e a mente repleta de ideias, adormeci, sonhando com um futuro onde cada aluno, com ou sem boné, se sentiria verdadeiramente acolhido e compreendido em nossas salas de aula. Que me desculpem os intrépidos, mas às vezes, é preciso coragem para desafiar o status quo em nome de algo maior – a verdadeira compreensão e empatia.

ALINHAMENTO CONSTRUTIVO

1-Comente a velha proibição ao uso de boné nas dependências da escola. Que influência tem essa medida no processo ensino/aprendizagem?

2-Como professor, você não se oporia às normas infundadas de sua escola em nome de sua reputação?

3-Que contribuição os pais prestariam à escola se adotassem o comportamento do pai Ignácio?

4-Até que ponto a escola tem culpa no alto índice de evasão escolar?

5-Segundo o senhor Ignácio, a proibição arbitrária do uso do boné

na escola foi uma violência praticada a ele. Que outros tipos de violência a escola está praticando aos seus alunos sem perceber?

6-Você já vivenciou algum fato em que o uso do boné atrapalhou o bom andamento escolar?

7-Faça uma ilustração para crônica que acabou de ler.

8-Relacione com o texto o pensamento de Bertold Brechet: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento/ Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.”