Passado
Enquanto remexia suas coisas antigas, remexia também seu passado. Conforme resgatava objetos esquecidos, trazia à tona memórias de épocas que, agora sabia muito bem, não voltariam mais. Assoprava a poeira que cobria suas lembranças, e os grãos irritavam seus olhos, fazendo-a chorar.
Tentou resistir, mas a monotonia cinzenta daquela tarde de quarta-feira fez com que ela cedesse aos encantos da nostalgia.
Através da janela do sótão via as copas despidas das árvores e o gramado úmido pela chuva fina que caía coberto por folhas acobreadas, que vez ou outra eram movimentadas por aquela suave brisa de outono. Fazia frio lá fora, e dentro.
O tempo ali já não mais se fazia notar, já se confundia presente com passado, fatos e pensamentos, sonhos e decepções. Lentamente passeava por momentos de sua vida, alguns já esquecidos, alguns que deixaram cicatrizes profundas, alguns doces, outros amaríssimos.
Suas mãos trêmulas, amedrontadas, vasculhavam entre embrulhos e caixas à procura daquilo que um dia lá havia deixado com a intenção de esquecer. Na realidade, nunca desejou realmente esquecer, caso fosse, poderia muito bem ter queimado todas aquelas coisas, e assim, restariam apenas cinzas de suas memórias. Mas não, tudo aquilo pesava demais. Objetos pequenos agraciados com um peso incalculável somado por tudo aquilo que representavam, e não deixariam nunca de representar. E era isso que não a permitia atear fogo ao conteúdo daqueles caixotes. O conteúdo de sua vida. Mas nem mesmo o fogo poderia apagar completamente todos os traços daqueles tempos, nem o fogo, nem nada, aquilo fazia parte dela, de sua história.
Cada presente, cada fotografia, cada objeto que tocava avivava ainda mais em sua mente as imagens daqueles dias.
E então, debaixo de um amontoado de documentos velhos e inúteis, encontrou as velhas cartas. Havia colocado-as escondidas ali, como se de alguma forma pudessem ser contaminadas pela desimportância dos outros papéis, e até quem sabe, em algum momento serem com eles jogadas fora durante uma daquelas faxinas mal feitas. Acontece que ela nunca limpava aquele lugar, e aquelas cartas jamais deixariam de ser o que são. A sua mais atroz e dolorosa lembrança.
Decidiu que não as leria, que não deveria fazê-lo, que não suportaria mergulhar tão fundo naquelas recordações, que já cobriam-na até o pescoço. Temia afogar-se.
Nunca foi do tipo obediente, adorava contrariar a tudo e a todos, inclusive a si mesma. Abriu uma delas.
Sentia claramente cada uma daquelas palavras vertendo-se em um punhal que ela mesma cravava em seu peito, sentia a dor a que espontaneamente se submetia, provava o quanto podia ser algoz de si mesma.
Não precisava ler nada, sabia exatamente o que estaria escrito na linha a seguir. Não porque havia decorado aquelas frases, mas sim porque as havia escrito, uma a uma, movida por sentimentos que a embriagavam na época. Frases que tomavam conta de seus pensamentos, tomavam conta de sua vida. Frases que sempre lhe colocaram lágrimas nos olhos, antes porque emocionavam, agora porque doíam.
Naquele cômodo formava-se uma densa névoa de fracassos e arrependimentos, com um leve cheiro acre, e já bem conhecido de suas narinas. Cheiro de suas fraquezas, de seus medos, cheiro que a fazia lamentar tudo aquilo que passou. Lamentar as coisas que deixou de fazer, deixou de dizer, tudo o que abriu mão, por nada.
Maldita tarde de outono.