ALGUMA MÚSICA

Estou aprendendo a tocar tambor. Coisa mais complicada, devo dizer, para um sujeito com coordenação motora zero e nenhum dom musical. Era o que eu pensava.

Nunca fui muito bom em marcação de ritmo. Até hoje não consigo dançar algo mais avançado que dois passinhos pra lá e dois pra cá; daí memorizar a marcação dos toques das mãos, sincronizar a batida da esquerda com a direita, e ao mesmo tempo improvisar alguns toques, tem sido uma espécie de cruzada contra a minha vontade de jogar o tambor pela janela e voltar a mediocridade das coisas que sempre quis aprender e deixei pela metade.

Então, certo dia, ao assistir um filme meio alternativo chamado O Visitante, que contava a história da amizade entre um americano e um imigrante sírio, para a minha surpresa, o tambor era o elo de amizade que aproximava os dois personagens e o imigrante tentando ensinar o americano os mistérios da arte da percussão, deu uma dica para ele, que era mais ou menos assim, e serviu também para mim:

“ Não pense no que você está fazendo, apenas toque, sinta as batidas e toque!” .

Corro para o meu tambor. Não penso, não raciocino, não complico e toco:

* Bondi dibondi dibombombom

Parece ser nada, mas prossigo...

Pa pa para papara dim dom

Novamente, parece qualquer batida, não fala nada, mas insisto...

Dendig den digden dau dau

Não consigo mais parar...

Padapa padapa pauá

Oba! Achei o som do meu tambor.

Toco e retoco.

Me divirto - é assim que se deve praticar qualquer coisa na vida: com diversão.

Vou dormir contente.

Consegui tocar alguma coisa, não é uma coisa inteira, mas também não é nenhuma; por isso dou parabéns a mim mesmo e aguardo ansioso o novo dia começar para eu me presentear com mais uma aula.

Os olhos pesam, o sorriso se disfaz numa boca semi-cerrada que ensaia um ronco, já sinto o corpo relaxado, já percebo que minha vigília está indo embora no correr do ponteiro do relógio.

Sinto as ondas do Mar de Alfa chegando e saúdo todas as vibrações divinas, e vou me deixando levar. Contudo, continuo desperto e acho engraçado não ter capotado logo para o mundo negro da inconsciência. Daí, percebo que há um som me atraindo, uma batida vai sintonizando a minha atenção e mantendo-me consciente, uma batida que parece um mantra, que funciona como se eu visualizasse uma forma geométrica que me guiasse por aquele mar de imagens, símbolos, significados e sons.

Não penso, não raciocino, não atrapalho a viagem e vou sendo levado para um lugar onde só há música. Não há pessoas, não há imagens, eu apenas sinto música. É lá que o meu som mora, o som que nascerá das minhas mãos, que eu produzirei com o meu estudo, que eu manifestarei com a minha intenção.

Eu sei disso tudo sem perguntar, sem receber respostas.

Como pode ser?

Eu nunca tinha lido em lugar algum sobre regiões no astral como essa. Só pode ser coisa da minha cabeça e é, afinal, eu estava ainda no corpo e ao mesmo tempo ali naquele lugar; se tivesse que lembrar daquela experiência, aquelas sensações seriam processadas pela minha mente fisíca que a revestiria com palavras, para que eu pudesse decodificar e recordar o que ocorrera depois. É assim que as coisas ocorrem na Terra, mas não eram assim que as coisas ocorriam por lá. A música era uma entidade viva e fluía em forma de inspiração em direção ao nosso plano para qualquer pessoa que desejasse pescar uma canção, uma melodia, uma nota, alguma música. Sei disso agora, por isso compartilho, mas naquele momento, essa informação era tão óbvia que pareceria tolice se eu a esquecesse.

Fui saindo de lá aos poucos, com algumas batidas no bolso, com o ritmo marcado pelo baco tu baco no baco bá baco que eu conseguia reter e quando despertei no corpo, lá estava o ritmo pronto; e apesar de correr o risco de ser expulso do prédio, saí da cama, fui até a sala, peguei meu tamborzinho e ensaiei aquela batida que eu acabara de pescar no Mar Astral o resto da noite toda.

Notas do autor: * As onomatopéias foram emprestadas de uma canção da banda Backyardigans.