Cartão Vermelho
- Detesto futebol.
Primeiro peço que controlem o desespero patriótico gerado pelas palavras acima. Reitero o pedido porque sei que a proximidade com o único acontecimento mundial capaz de elevar o Brasil a patamares heróicos, aumentará a indignação dos que me lêem. Sejamos honestos uns com os outros! Se meu desabafo seco o fez abrir um sorriso amarelo e comentar com os amigos na sala: “Se liga nesse cara! Brasileiro que não gosta de futebol??? Só pode estar brincando!” o convido a interromper a leitura e assistir aos gols do seu time de coração nos intermináveis programas esportivos. Aliás, não esqueça também de assimilar os ricos vocabulários futebolísticos, multiplicados e mutilados, de maneira “artilheira”, por comentaristas que, da noite para o dia, surgem com soluções e estratagemas para explicar a derrota de suas equipes. Vá mais além e discuta com os amigos, sufocando as provocações lançadas pelos vitoriosos do dia anterior. E se você faz o tipo explosivo que repudia provocações mas é o primeiro a ligar para conhecidos na final do campeonato, comece a guardar dinheiro: o preço do marcapasso cardíaco tende a aumentar com a retomada do dólar.
O que mais gera indignação quando penso em futebol e campeonatos mundiais é a amnésia reflexiva que comanda nosso cotidiano. Acabar com a fome no salivante sertão? Discutir o turismo sexual esquecido no nordeste? Lutar contra o castigo político eleito por nós? Infelizmente, se você faz parte da maioria pisada pelo atropelo social, durma e acorde em 2007. O Brasil de Terceiro Mundo, pobre em ideais, desorganizado, faminto e sob a mira do descaso, anestesia-se nos meses que seguem. Saco de arroz? Passa a bola!!! Educação sustentada? Foi falta juiz ladrão!!! Moradia para os mazelados esquecidos na calçada poeirenta? CHUTAAAAA!!!
A metamorfose social surge do encontro da carência nacional por líderes e heróis com a possibilidade de encontrar onze deles em campo. O orgulho surge potente, gritamos “Sou brasileiro!” em volume anormal, declaramos o começo da era em que a união definirá o progresso da nação e acreditamos que tudo será promissor. Mas quando acordamos da ressaca comemorativa percebemos que os gols não alimentaram os famintos, os dribles não diminuíram a miséria vergonhosa e a taça, em invejável brilho dourado, apenas realçou o branco anêmico de nossas crianças.
Em momento algum culpo o caos social às vitórias da equipe brasileira. Acredito que cada vez que lágrimas são substituídas por esperança a motivação nasce mais forte. No entanto sofro ao perceber que a vitoriosa “equipe brasileira” não é composta por políticos e autoridades que carregam o desenvolvimento da nação em suas funções. São ex-moleques da favela, crescidos em sofridas condições e machucados pelo mesmo sistema político que hoje aperta suas mãos dizendo: “O Brasil agradece”. A responsabilidade pelo desenvolvimento da nação foi “transferida” para jogadores, com idades cada vez mais adolescentes, e qualquer desfecho que não seja a vitória criará obstáculos em nosso desenvolvimento.
Aos 10 anos fui escalado para cobrar o pênalti que definiria o campeonato entre as turmas do ginásio. Agarrei a calejada bola com atitude vencedora e a posicionei poucos centímetros atrás da marca. Confiante, decidi não tomar distância. Chutei com força e acompanhei a bola estourar o travessão, enquanto gritos histéricos eram acompanhados da invasão na quadra. Saí despercebido, fugindo dos medrosos comentários de que “pênalti é loteria”, e andei sem destino certo por alguns minutos.
Nunca me arrependi por ter perdido o campeonato. Arrependi-me somente por ter acertado a trave quando, na verdade, havia mirado o diretor da escola.