Crônica do livro perdido

    


       Hoje, minha crônica está sendo rabiscada em São Paulo. É quase meia-noite e faz um frio da moléstia. O homem do tempo, com presença obrigatória no rádio paulistano, acaba de anunciar que, na Avenida Paulista, os termômetros marcam 12 graus.
       Tive que abrir uma garrafa de vinho. Ali está ela quase vazia! É bom escrever com frio, vinho e saudade... Nos velhos tempos, também com um cigarrinho. Mas faz algumas décadas que fumei o último Holliwood. Substitui o cigarro pela música. Hoje escrevo ouvindo música.
      Queria dizer, que fiz um excelente voo a bordo de um Airbus A321 da TAM, veloz e confortável. O céu entre Salvador e São Paulo era de todos os  brigadeiros. 
     Durante o voo, procurei esquecer a tragédia - todos morreram - do A320, da Air France, ocorrido dias antes, percorrendo as páginas de um livro da Clarice Lispector, caprichosamente escolidas para ler lá nas alturas. 
     Como eu disse, um voo quase sem turbulência; alguma quando passei ao lado de Belo Horizonte. Isso não surpreende: as aeronaves requebram quando sobrevoam as montanhas de Minas. Requebros difíceis de serem tolerados. A gente, de repente, chega a pensar que aquela indesejável "hora" se aproxima. Vi passageiros se benzendo. Eu mesmo fiz um discreto Pelo-sinal.
     Na chegada em Sampa, nuvens escuras escondiam o aeroporto de Guarulhos, que se chama Governador André Franco Montoro. Apesar do nevoeiro denso e constrangedor, o pouso foi sem probelmas.
    Com a aeronave no pátio, cuidei de pegar a bagagem de mão, enfrentando a confusão que geralmente se instala, na hora do desembarque.
    Todos parecem querer livrar-se da aeronave ao mesmo tempo. Deixam-na às pressas. Se mandam sem oferecer à tripulação sequer um sorriso de agradecimento pelo bom tratamento recebido a bordo.
     No sufoco do desembarque, deu-se que, num imperdoável cochilo, deixei, num dos assentos do Airbus, o livro de Clarice Lispector.

      Só me dei conta de que o havia abandonado na aeronave quando deixava o aeroporto; e fiquei puto da vida. 
     Como estava diante do irremediável, busquei um paliativo qualquer capaz de abrandar minha frustração com a perda do livro da Clarice.

        O primeiro impulso foi o de prometer comprar outro livro, para prosseguir na leitura, bruscamente interropida.
     Procurei-o em várias livrarias de Sampa e não o encontrei, o que veio a causar-me enorme espanto. Afinal, a Clarice Lispector não é uma cronistazinha qualquer. Iria encontrá-lo, com certerza, nos excelentes sebos da Praça da Sé e adjacência.
     Quem  encontrou meu livro não terá, em nenhuma de suas páginas, o meu  meu endereço.
        Talvez minha assinatura, com a data de sua aquisição.
     E o nome do livro?  Aprendendo a viver. Ele reune crônicas da autora de Laços de família, escritas entre 1967 e 1973. Quem o encontrar, leia-o com carinho;  e, com Clarice Lispector, aprenda a viver melhor.  Já me darei por satisfeito se ele ajudar alguém a ser mais feliz na vida...

(São Paulo, 01.07.2009) 
       

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/07/2009
Reeditado em 23/10/2019
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