Som de humanização

O cantor Andrea Bocelli esteve ontem em São Paulo se apresentando para um público de quase 30 mil pessoas. Entre elas; eu! Cheguei por volta de 15: 30h e, enquanto caminhava da estação de trem até o parque da independência, observava uma infinidade de pessoas fazendo o mesmo percurso - como em uma procição. Aquilo me preocupou, devia estar uma confusão daquelas. Às vezes, fico relutante de ficar exposto diante de grandes públicos, afinal nada mais importa, além do umbigo. Depois de passar por uma revista fictícia da polícia militar, entrei. Já estava impossível chegar muito perto do palco, mas a sensação de frescor com o tempo úmido e - por alguns momentos, chuvoso - me inspirou a permancer. Em pouco tempo o egoísmo humano foi se apossando do público. Uns queriam em pé, outros sentados. Os que chegaram primeiro não achavam justo que os que entraram depois se colassem em pé nas posições mais "vantajosas", os que tentavam abrir caminho por entre a multidão até locais que lhes pareciam mais apropriados eram criticados e xingados pelos outros, já colocados. Se o celular tocasse era melhor não atender, pois como em um cinema todos faziam ruídos sibilantes com os lábios em tom reprovador. Lembrei-me da torre de Babel - e cheguei a comentar com uma senhora do meu lado com um rosário na mão -, "por isso Deus separou as línguas na torre de Babel. Ele queria separar as pessoas, pois onde há a reunião em massa delas, impera o pecado e o mal", declarei. Ela não pareceu aceitar tudo o que eu dizia, mas acatou imaginando que alguma coisa que eu dizia devia estar certa mesmo. Pouco depois das 16h a apresentação começou. Ainda podia se ouvir pessoas resmungando sobre os locais que estavam. Podia se ouvir, comentários de um público nada selecionado - afinal o show foi de graça. "Essa parte da flauta é chatona, meu. Se fosse um brasileiro tocando ninguém gostaria" - disse um. "Será que a Ivete vai cantar poeira em forma de ópera... Poêêêiraaaa?" seguiam-se os risos. Mas ele estava lá, olhando para dentro da alma e tirando sua arte do fundo de seu coração. Tocou os nossos com certeza. Calmo e sereno, imaginando seu público - sentindo pelas palmas e ovação quantas pessoas poderia haver, fez seus solos e duetos com covidados especiais. E, mesmo quando eu achava incoerente ter a Ivete Sangalo cantando numa apresentação daquele perfil, a mudança de perspectiva feita a partir de um determinado momento do show com a presença de Toquinho, fez com que se formasse uma atmosfera brasileira - com a bossa e Aquarela em italiano. Saímos de lá sentindo que uma chuva de virtudes nos havia banhado. O público de irriquieto havia ficado sereno como o cantor, as palavras ríspidas e, muitas vezes, agressivas tinham se tornado em palavras de confraternização, os locais "preferidos" calmamente foram sendo abandonados e logo o palco ficava para trás. Como animalzinhos domesticados, cada um foi voltando para o seu lar, risonhos e tranquilos. Por um momento me imaginei grande, acima, poderoso e fiquei a observar cada pessoa que podia, tentando lhe absorver a alma pelo olhar. Queriam voltar para suas vidas prosaicas, queriam compartilhar suas impressões, queriam partir cada um pelo seu caminho. De só que estava, também me uni a uma amiga depois do concerto, e ao começar a falar das sensações que tínhamos tido, de repente, voltei e percebi que eu também só era mais um que compõe o gênero humano; e que arte é um ótimo caminho para fazer lembrar o homem que existe algo dentro de nós que nos afasta da irracionalidade.