36 - MIOLO MOLE...
36 - MIOLO MOLE
Sujeito de miolo mole era o que afirmavam, Tolé vivia zanzando pelas ruas da cidade.
Buscava dia sim dia não, em um lugar como matadouro improvisado, costela, suã e pé de boi. Era o que lhe davam não sem antes tirar um sarro. Tinha um açougueiro de nome Tonhão da Pinta que gostava de maldar com Tolé. Pegava uma cabeça de boi do corpo já decepada, puxava língua da caveira e a colocava na altura da cabeça e corria atrás do Tolé gritando vou te pegar e te comer, mugindo como um maluco. Tolé saia correndo pela estrada, pulava no brejo atolando-se no barro.
Tolé vivia com sua mãe nos arredores da cidade em casa que diziam abandonada. A verdade, porém, é que o rapaz que lá morava foi para guerra combater alemães e italianos; jamais voltou. Entretanto, ninguém soube se morreu lá no front ou se tomou gosto pela coisa de no exército estar. Só sei que naquela casa e na cidade perrengue não voltou mais.
Sofrida na vida, Tiana vivia falando sozinha como se rezando estivesse. Dizem que, enquanto menina, fora admitida em convento de congregação de irmãs que tinham votos de pobreza. Viver com pouco a vida lhe impusera. Má sorte!
Ela fora indicada ao convento por um padre que morava na cidade. Ninguém nunca soube filha de quem ela era.
Ele Tolé, entre menino e rapaz tinha o corpo curto atarracado, braços pendentes bem longos como característica nata; mais parecia um primata.
Na cabeça um boné. Com ele dormia e levantava. Certamente era figura tão constante que até parecia que com o boné já nascera.
Tolé carregava uma capanga feita de couro ordinário... não se sabia, porém, o que carregava ali dentro. As roupas sempre usadas de outro que já deste mundo partira e suas medidas por certo bem menores que o defunto.
Tiana enquanto no convento estava, aprendeu a ler e escrever nas horas tardias da noite, depois de limpar todas as salas carregando pesados baldes de água. Banheiros e corredores todos bem limpos a Madre inspecionava, passando o gordo dedo mirava olhando contra a luz se havia alguma mancha.
Parecia que ela queria mesmo era suspender o jantar da Tiana. Se não ficasse bem feito tinha que todas as peças esfregar, esfregar, esfregar...não admitia muxoxo nem cara feia ou choro. A Madre Superiora dizia sempre na sua cara que ela morava ali de favor, embora recomendada do padre, mas ali só ficaria enquanto o Padre naquela cidade vivesse.
Diziam os mais antigos que Tiana era filha do sacristão com a empregada do padre. Acho isso uma indecência, para não dizer um pecado, falar sem poder provar. Mas uma coisa era certa, até nos dedos das mãos meio tortos feitos garranchos (mal comparando), eram iguais as mãos do bom sacristão.
Muito serviço, pouca comida e poucas horas de sono. Duro batente é o que Tiana tinha garantido ali no bendito convento. De resfriado e tosse logo caiu doente, de cama por mais de mês atendida pelo capelão que também era médico. Quando se recuperou e se pôs capaz, foi despachada de vez.
Foi pela vida rodando como pedra que não cria limo... De cidade em cidade, até que apareceu por aqui com seu rebento quase arrastado pelos braços. Sujos, maltrapilhos sem casa. Dona Zefinha de Pedro os acolheu e deu abrigo, primeiro em sua casa depois pediu ao Seu Pedro que limpasse aquela casa abandonada lá perto do retiro onde morava o Zé Xisto que se mandou para a guerra e nunca mais fôra visto.
As comadres de dona Zefinha acertaram de aquela gente ajudar era uma cuia de farinha, meia quarta de fubá, um pouco de sal, café pilado, umas latinhas de gordura, do pouco que todos tinham distribuíam com prazer para Tiana e Tolé.
Como é lógico também, tempo passando, Tolé crescendo virando rapaz, pouca conversa, a esquisitice com ele crescendo junto, não dizia coisa com coisa, isso quando a gente entendia. Só uma coisa era certa: dia e hora marcados lá estava ele no improvisado matadouro costela, suã e pé de boi eram o que lhe davam de graça. Chegava em casa com os pertences. Era machado, faca e panela e no fogão de lenha onde o fogo nunca apagava. Única tarefa que Tolé conseguia cumprir.
Por dois dias Tolé no matadouro não apareceu. Da última vez que lá esteve tendo uma cabeça de boi partida, deram-lhe duas cuias de miolo de boi limpo, até ferventado. Tolé que nunca experimentara aquela iguaria comeria com farinha a metade a outra esconderia.
Sua Mãe a vida inteira desde que ele nascera só vivera para dele cuidar, achava justo, porém do miolo experimentar. Tolé não concordou, ficou raivoso babando, esbravejando com o machado na mão, Tiana caiu sangrando com uma pancada bem no alto do cocuruto. Tolé não entendia porque ela caiu e ficou tremendo. Parecia estar com frio, colocou a mãe na cama a cobriu com colcha e cobertor, comeu o restante do miolo, ficou dois dias a velar o sono da mãe na cama.
Como pressentindo um drama Dona Zefinha e as comadres foram verificar o que podia ter acontecido Tiana e Tolé haviam desaparecido. Quando chegaram à casa que abandonada um dia fôra, encontraram triste quadro: Tiana na cama, morta, com a cabeça rachada e Tolé com uma cartilha na mão que do embornal retirara e como se estivesse lendo com os olhos virados um para esquerda e para baixo, outro para a direita e para cima: Rezava, rezava, rezava!
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