A VOLTA DOS MORTOS VIVOS

Hoje, quando seguia para o trabalho, vi passando dois rapazes com vestes um pouco rotas, o que naquela área leva rápido ao pensar de que se trata de viciados em craque, pois a localidade próxima parece um manancial de dependentes dessa droga. Todavia, acho que aqueles eram dos rapazes que moram numa casa próxima a um ponto de venda. Nessa casa se dá tratamento contra a dependência, apoiando e recuperando jovens dominados pela droga. Um dos dois que passavam contava entusiasmado sobre suas qualidades como jogador de futebol e a preferência que lhe era dada em certo pequeno time. Fiquei aliviado por vê-los entusiasmados, embora que aparentemente bem pobres. É que entusiasmo contrasta em muito com o pessimismo e apatia que se vê hoje crescendo entre jovens que andam pelas ruas em bando ou solitários, produzindo balbúrdia intimidadora, cantando músicas depressivas, como os funks insolentes, revoltados e pornográficos, dormindo em calçadas de pés descalços, pois os tênis já venderam para comprar droga, e pedindo dinheiro nos pontos de ônibus e lojas.

Verdadeiramente eles parecem como que vindos das catacumbas. Transitam pelas praças como se os outros não existissem, mas percebem os passantes quando pretendem vender-lhes por um ou dois "pilas" algo roubado, ou para dar um grito com uma senhora e tirar-lhe uns trocados que valha uma pedra.

Realmente eles se parecem com mortos vivos, pois andam como “zumbis”, com a aparência desfigurada em poucos meses e morrendo em mais alguns poucos. Deve ter sido este o caso de um rapaz bem apessoado que meses atrás se via a pedir sem camisa dinheiro as jovens trabalhadoras nas paradas de ônibus nos finais de tarde. Naquele tempo ainda vestia roupas limpas, caminhava com boa postura, tratava com educação e retórica elegante. Todavia, na última vez que o vi, o que já faz mais de um mês, andava com as pernas duras, tendo a barba preta a cobrir-lhe o rosto, as roupas rotas como as dos mortos vivos dos filmes e a postura que mostrava ter bem mais de oitenta anos.

De fato eles são mortos vivos, pois vivem em um outro mundo e a vida em nosso mundo lhes parece estranha e sem sentido, não sendo mais que um vislumbre turvo, um delírio torcido, um paraíso que lhes parece viscoso na boca, uma alucinação que tiveram no ventre da mãe.

Certamente eles nos vêm em slow motiom por frestas na névoa de seu mundo rajado de sombras e luzes, mas nosso mundo é-lhes brilhante, de um tom meio nauseante, cujos reflexos eles vêm por entre pálpebras de vãos exíguos que se abrem com dificuldade. Certamente nosso mundo pacato é o paraíso onde eles lembram da existência de objetos que podem valer algo – uma importância insignificante que serve de passaporte para uma nova viagem rápida por esse mundo de ilusão e decadência ébria que eles vêm como esperteza e malandragem. Nesse mundo é onde logo os cachorros estarão a urinar-lhes no rosto. E esse seu mundo de sonhos logo se torna em pesadelo que, com habilidade impar, mantém disfarce de sonho, o qual vai lhes tirando a vida enquanto ainda vivos, mas fazendo-os sempre mais vegetativos, mais parasitas, para em fim extinguirem-se qual germe que retrocede da germinação por incapacidade de crescer. Então eles se tornam menos que nada, dando daí os últimos suspiros enquanto esse câncer da drogadição cresce sem controle, produzindo tumores nessa sociedade doentia, entrando em suas casas e arrastando para os cemitérios muitos mais de seus filhos, irmãos, sobrinhos, primos, amigos – pessoas que nossa indiferença não achará falta. Assim foi a história do irmão que perdi para as drogas em 1995. Assim a insolência dos jovens seguirá a encher as ruas de mortos vivos, que devoram outros jovens, tornando-os novos mortos vivos, os quais o último suspiro logo levará para a sepultura.

Adote seus filhos, irmãos, primos e amigos antes que a morte os adote, antes que sua própria vida também perca o sentido.