“Meu carro é vermelho” – uma crônica de humor sobre automóveis

“O brasileiro é apaixonado por carros” *. O fascínio que a máquina exerce sobre alguns homens é tão grande que alguns proprietários chegam a tratar seus automóveis como se eles tivessem vida. Mas como a mulher lida com o seu?

Meu pai está no ramo automobilístico há décadas.Para ele, o carro foi sempre um objeto de venda.E nada mais.Já para o meu irmão, a coisa é bem diferente: nada de pés sujos, comida ou bebida em seu interior e ai daquele que bater a porta do seu modelo esporte! Ele seria até capaz de... Chorar!

No carro do meu sobrinho havia tudo o que ele tinha direito: som potente, calotas belíssimas, pára-choques especiais, DVD, vidros automáticos...Menos o primordial: seguro!Segundo ele, era muito caro. Parou o carro em frente a uma clínica para apanhar um exame e quando voltou, menos de vinte minutos depois, adeus Golzinho.

Há um pouco mais de dez anos, tive uma chefa que morava num sítio.Certa vez, ela, muito cordial, ofereceu-me uma carona.Ao contrário do meu irmão que teme que sujem seu carro, eu temi que o carro dela me sujasse! Jesus, foi difícil divisar o painel do veículo por baixo daquela espessa camada de terra vermelha! Acompanhar a paisagem pelo vidro? Nem pensar!

Os homens cuidam melhor dos seus "brinquedos".O marido da Michele, por exemplo, não aconselha que ponham as mãos sob o seu  estimado veículo.Segundo ele, o "sal" presente na palmas das mãos pode danificar a pintura!?

Entrar no carro de uma colega, entretanto, era sentir-se em casa...Na dela! Ou melhor: no quarto dela. Havia almofadas, bichinhos de pelúcia pendurados, cortininhas e uma porção de outros objetos “fofos”, incluindo adesivos de personagem de desenho animado e spray com cheirinho de bebê. Por fora, eram raras as vezes em que a lataria estivesse limpa.

E por falar em adesivos... A criatividade do brasileiro é tão grande! Eis alguns exemplos:

“Se rodar o guarda pega, se parar o banco toma”; “Sob NOVA DIREÇÃO: recém desquitada”; “- Sorria, sua mulher me ama”, “Eu amo Capiringa do Sul” (cidade fictícia criada pela recantista Malu); “Corno é assim mesmo, lê tudo que vê”; “Heloísa a bordo” (esse está no meu),“Gislaynne a bordo” (esse está num carro cuja bebezinha provavelmente odiará seus pais pela escolha do seu nome bizarro).

Há ainda outro aspecto curioso nessa íntima relação: os apelidos! Carinhosos, engraçados, os donos nomeiam suas carangas com muita facilidade.Meu marido, quando jovem, teve um carro cuja alcunha era “Coxinha”. Não, nada a ver com o salgadinho vendido em padarias e lanchonetes.É que havia tanta massa na lataria do Fusca que o apelido veio a calhar.

Um semáforo vermelho é a ocasião perfeita para alguns motoristas exibirem suas “potencialidades” ao “adversário”, isto é, para o dono do carro posicionado ao lado, que dirige um modelo mais modesto: aumentam o volume da música, fazem o motor roncar, abaixam o vidro...É nesse momento em que os egos se inflam e o homem feio torna-se belo, o fraco, forte e o impotente, viril:

-Quem gosta de motorzinho é dentista!

Toda essa energia atrai muitas “Marias-Gasolina”...Triste!

Talvez seja por receio desse enfrentamento que muitos jovens preferem andar a pé a dirigir um carro velho, como cantaram os Paralamas do Sucesso: “Carro velho /Carro velho pra quê? /Se é pra ficar no caminho/Eu prefiro nem ter” (...) “Pra ver os meus filhos com vergonha de mim? /Pra ver os vizinhos todos rindo de mim? /”.Mas algumas meninas decerto aprovariam a versão de Ivete Sangalo: “Quer andar de carro velho, amor/Que venha/Pois eu sei que amar a pé, amor/É lenha”.

Nem sempre as mulheres entendem a relação com que o homem moderno estabeleceu com o automóvel. Para elas, um carro é só um carro.Para eles, é mais: é um hobby, peça de colecionador, orgulho. Incauta será aquela que disser: “ o carro ou eu” pensando que o parceiro optará, sem pestanejar, por ela.

O carro particular, que nasceu com o fordismo norte-americano nos anos vinte e floresceu na Alemanha nazista dos anos trinta, infelizmente está se tornando uma tortura por causa do trânsito das grandes cidades. Mulheres ou homens, na hora do estresse, trocam impropérios durante uma discussão.A violência verbal extrapola todos os limites.Acelera-se nos xingamentos.A falta de educação é atropelada. “Gata", "boneca”, só mesmo o carro.E ainda assim, há muitos anos que os vendedores, como meu pai, já não escrevem nos vidros dos carros tais adjetivos para atrair os clientes.

A grande verdade é que muitos motoristas estão precisando mesmo é de um recall.Urgente.

 

(Maria Fernandes Shu – 28 de junho de 2009)

 




 
* Essa frase faz parte da campanha publicitária da rede de posto de gasolina Ipiranga
Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 29/06/2009
Reeditado em 03/07/2009
Código do texto: T1673341
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