Caminhos de São Paulo: Sul

TERCEIRO DIA

CAMINHOS DE SÃO PAULO

Zona Sul: Igreja Santa Edwiges – Estrada das Lágrimas.

CONTRATO DE MULA

Ia vindo pelo meu caminho, quando decidi parar e observar um lugar. Era uma vila muito bonita que ficava às margens do Sol e ao lado da Lua.

Eu era estrangeiro, mas me deixaram ficar. Nesse lugar, todos os visitantes são tratados como rei e os peregrinos são quase homens-santos. Confesso que gostei.

Por mim, ficaria por ali por muito tempo. Estava confortável, feliz e aprendendo muito.

Então, percebi que poderia ficar por lá, mas teria que pagar um preço.

Foi difícil perceber esse preço, pois a vila veio de mansinho, se instalando confortavelmente em meu peito, mostrando maravilhas, revelando o paraíso, sempre com muito bem-estar. Tive certeza que havia achado o meu lugar, mas mesmo assim, algo em mim me lembrava: não dá pra ficar somente estudando aqui, há muito mais para descobrir em outros lugares.

Daí quando disse que ia partir, veio a cobrança: é melhor você ficar, só aqui você encontrará esses presentes celestiais – se partir não terá mais acesso a esse aprendizado, pois esse é o caminho de um caminho só: "Peregrino, pare de caminhar, você chegou ao seu destino. É hora de parar de procurar!"

Naquele momento percebi que se aceitasse o contrato, aprenderia coisas extraordinárias, encontraria tudo aquilo que sempre busquei, mas pagaria com a minha alma e assinaria um contrato de mula.

Sou passarinho, não sei caminhar, nem voar com viseira. Gosto de observar o mundo com o canto do olho, gosto de olhar pra tráz tanto quanto pra frente. Corro o risco de cair, mas sei que as minhas asas são fortes e pode até levar mais tempo, mas quero provar a mim mesmo que todos os ares levam ao mesmo destino.

Daí empaquei e não quis mais continuar.

Fui chamado de teimoso, louco que não aceita o que se é para aceitar – mas o que há para se aceitar quando se é exigido acreditar que a verdade não está em todos os lugares?

Posso estar errado, mas se essa verdade universal não estiver em todo lugar, ela não é verdade para mim.

Não sou escolhido, pois todos nós somos especiais e em todos os lugares há pistas de como chegar onde todos querem chegar.

Posso não ter a visão da águia, nem ser passarinho de canto raro; não tenho o olfato do lobo, nem a força do urso; sou apenas um passarinho preto de voo torto, mas garanto que se algo há, esse algo não exige cabresto, gaiola, cativeiro, jaula ou fidelidade eterna a nenhuma escola.

Sou livre, dentro daquilo que a minha liberdade pode me dar; mas sou livre.

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CRISTO DE TODAS AS CORES

Em meio ao som de atabaques, chego na Estrada das Lágrimas 910, onde fica a Igreja de Santa Edwiges. O templo é bonito e chama a minha atenção que estava concentrada nos barracos do Heliopólis. Há duas moças baianas lavando as escadas, dá vontade de perguntar se elas são devotas do Candomblé, mas decido ficar calado. Um moleque aparece querendo me vender fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim – pergunto pra ele:

- Confirma pra mim, meu Reizinho: estou em Salvador ou em São Paulo?

O moleque ri e some com meu real.

Entro na igreja: ela é pequena e lembra uma capelinha. Gosto de igrejas assim, sem tantas imagens, vitrais, plumas e paêtes que roubam a sua atenção daquilo que você veio fazer. Porém, antes mesmo que eu agradecesse a Rainha por eu ter chegado em mais um destino de minha caminhada, vejo a imagem de um Cristo no altar central que me surpreende totalmente: Ele está sorrindo!

E não é só isso: de suas mãos saem raios coloridos que avançam em todas as direções e atinge em cheio a minha cabeça.

Entro em êxtase e começo a acessar o “outro olhar”.

Que mundo mais bonito!

Tudo na igreja fica iluminado. As fitinhas para Santa Edwiges e de São José explodem em cores vivas, ouço mil pessoas orando, e vejo todas as orações circulando naquele lugar. Sinto o cheiro de jasmim e alfazema, e flores começam a surgir por todo altar.

Ah! Deus também está na igreja católica!

Percebo que desde que me tornei espiritualista, tenho nutrido um preconceito por todos os símbolos da religião cristã. Essa caminhada é um pedido de desculpas. Não importa o passado tenebroso do que foi feito em nome de Cristo, o que é importante é o que sinto por Jesus.

Sinto muito respeito!

Sorrio e agradeço a Mãe Divina por ter permitido ao Mestre Ramakrishna nos contar que todos os caminhos levam ao mesmo lugar.

Estou feliz por ter iniciado aquela caminhada por Sampa e por todos os presentes que não param de chegar.

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LARRASOAÑA\PAMPLONA

Cruzo uma estrada de asfalto, o barulho dos carros pertubam o meu estar integrado com a natureza. Ouço as buzinas, respiro a fumaça e quero latir, quero gritar, quero ser bicho do mato e dizer a todos que sumam da estrada e me deixem continuar em comunhão com o meu eu-mais-puro, daí me dou conta do ridículo de pensar aquilo. É muito fácil ser luz na luz...

Não digo nada, mas fico contente quando a trilha sai da carretera e volta a natureza. Quem sabe, um dia, sentirei essas mesmas sensações maravilhosas na cidade grande...

Caminho ao lado do Rio Arga em contemplação. O sol bate na água e reflete em minha retina e sinto a mais profunda alegria por estar aqui. Daí uma parte de mim me lembra que se eu fosse mesmo firme com o meu estado espiritual, eu conseguiria sentir isso em Sampa.

Ignoro a voz, sou teimoso, prefiro a natureza.

Um pouco depois, chego no povoado de Arre, já estou perto de Pamplona, posso sentir a energia pulsante da cidade; porém, me distraio com meus pensamentos e acabo indo por alguma outra trilha, que não a estrada real. Estou perdido!

A noite vai caindo rapidamente e começo a ficar nervoso. Não quero ficar na mata no escuro.

Ando mais rápido, corro, mas nenhum sinal das setas, nenhum sinal do Camiño. Oro e peço, rogo a Mãe Divina que me conduza de volta para a trilha. Temo por minha vida, há boatos de lobos, há histórias de todos os tipos de assombros ou desventuras que já levaram peregrinos embora desse mundo, mas não tem jeito, a escuridão avança e preciso lidar com o medo que galopa, galopa, galopa, cada mais dentro do meu corpo e ao meu redor, até que diante do terror absoluto e no meio daquela Zona do Absurdo, eu me dou conta que há algo a mais que o corpo, tenho mais força que medo e sento no chão. Respiro profundamente, canto para os meus chacras, os chamo por seus nomes, repito os seus bijas, e vou ficando calmo, bem calmo, muito calmo, tão calmo que percebo um brilho sendo refletido numa placa. É a luz da lua surgindo no horizonte batendo na seta dourada: Estou achado!